Polarização e o contexto político atual

Polarização e o contexto político atual

Artigo de Opinião por João Pedro Fraim em 08 de abril de 2022


Publicado por Maria Rita Mamede

Duas sombras de pessoas, uma azul e uma vermelha se encarando, demonstrando a polarização.
A polarização que afeta os principais âmbitos da sociedade contemporânea é uma problemática? (Reprodução da imagem: BBC News).

“O cenário político nunca esteve tão polarizado” – essa é uma afirmação que escutamos frequentemente nos principais veículos de comunicação e até mesmo na fala de grandes acadêmicos, que apresentam um medo incontestável da polarização política, tratando-a como o verdadeiro inimigo do século 21. A atual situação do mundo pode ser explicada usando a relação de causa e consequência, mas não se pode estabelecer uma solução plausível para a mesma. Por isso, a polarização que afeta os principais âmbitos da sociedade contemporânea não é uma problemática, e sim algo profetizado no estudo da natureza política. Vamos entender.

A frase postulada no começo do texto pode ser argumentada de duas formas. A primeira é a repudiando: o cenário político já esteve muito mais polarizado em outros períodos estudados pela História e pela Sociologia. No século 14, o mundo passava pelas Grandes Navegações, período em que potências europeias invadiam terras já ocupadas, saqueavam seus bens de subsistência e usavam a força física dos nativos em prol do enriquecimento da metrópole. Já na Segunda Guerra Mundial, o regime ditatorial alemão visava conquistar todo o globo a partir de ideologias extremistas, que literalmente queimavam pessoas em grandes campos mortuários. Há pouco menos de 90 anos, os Estados Unidos da América redigiam na Constituição americana emendas que fomentavam a segregação de grupos minoritários. Então, é válido afirmar que no período de mais de 350 mil anos de existência da raça humana, a polarização já esteve muito mais presente nos âmbitos políticos. 

Entretanto, a oração apresentada inicialmente também pode ser analisada com um olhar mais profundo e cuidadoso sobre o presente, e é nesse ponto que a discussão se inicia. O século 21 é a verdadeira resolução histórica das conquistas da humanidade: o desenvolvimento tecnológico e científico nos âmbitos sociais e econômicos ao redor do planeta reforçaram a tese de soberania da espécie humana. Todavia, diversos intelectuais defendem que essas dádivas se transformaram em discórdia e competição internacional. Milton Santos escreve na obra “Por um outro lado da globalização” a problemática por trás do processo de aproximação dos mercados financeiros e como essa teoria abre espaço para o preconceito e a desigualdade. Por outro lado, o italiano Giuliano da Empoli escreve no livro “Engenheiros do Caos” como o discurso de ódio é encoberto pela liberdade de expressão e fomenta o ódio social. São esses fatos presentes na atualidade, unidos à sensação de liberdade e democracia, que estabeleceram a política de hoje e dão espaço à polarização.

A diversidade intelectual, as vivências pessoais e as problemáticas sociais aumentam consideravelmente o espectro político. Além disso, o mundo é variado:  todos os dias pessoas nascem e morrem, inquietações aparecem, e o lugar libertário da opinião civil se apresenta como resultado desse estigma não constante. Por isso, é correto afirmar que a polarização de hoje não é uma problemática, e sim uma propriedade do debate democrático. A divergência enraizada nas sociedades e nações ao redor do mundo é compreendida por meio da diferença das vivências humanas, somada ao alcance do discurso individual.

O que devemos condenar não é a polarização, mas a intolerância da oratória que fecha o diálogo democrático e desmonta o Estado de bem-estar social. É esse processo que exige uma atenção especial de nós enquanto seres humanos. Muitas vezes a discussão atual gira em torno da negação da Proclamação Internacional dos Direitos Humanos e Individuais, documento postulado após a Segunda Guerra Mundial e que tinha como objetivo fazer com que o período que matou mais de 40 milhões de pessoas ao redor do mundo nunca mais se repetisse. É imperdoável que a nossa espécie, depois de séculos de aprendizados e lutas, repita os mesmos erros passados, jogando fora tudo que arduamente foi conquistado.

O agravamento de movimentos supremacistas, o surgimento de milícias sociais, o levante internacional da extrema direita e a ampliação do discurso de ódio comprovam, por si só, o que lidamos nos dias atuais: a guerra contra a intolerância, que, mais uma vez, gera polarização política.

A transnacionalização de organizações paramilitares com retóricas neofacistas e opressoras, advindas dos Estados Unidos, comprovam um sentimento nacionalista que faz parte da historia norte-americana. É curioso perceber que o grupo de terrorismo doméstico da Ku Klux Klan (KKK) surge em 1960, período no qual importantes nomes da luta antirracista e anti-capitalista resistiam e respondiam fortemente ao descaso social enfrentado pelos EUA. Por outro lado, o que vemos hoje, com o fortalecimento do Proud Boys e do Qanon, ambas facções criminosas do mesmo estilo da KKK, é uma resposta ao levante consciente da população negra e de grupos minoritários na ocupação definitiva de lugares de poder. 

A intolerância aparece com o desrespeito individual e com a quebra do decoro comum. A partir do momento em que se repete a lábia infundada de grupos extremistas e decide-se vandalizar e corromper instituições federais, como ocorreu no dia 6 de janeiro de 2021 em Washington, o discurso se torna preocupante. Não existe debate e liberdade de expressão para o ódio deliberado. O que vimos nos Estados Unidos, a crise humanitária da Venezuela e o autoritarismo do novo governo húngaro não devem ser considerados uma polarização política, uma vez que as mesmas não dialogam com o debate democrático. Esses processos afastam o povo da soberania estatal e são, incontestavelmente, intolerância e atraso.

O negacionismo leva ao genocídio e, em meio a maior crise sanitária e hospitalar da história, o desrespeito às medidas sócio-protetivas impostas por organizações internacionais competentes, o descaso com a população mais necessitada e a tentativa de colocar qualquer coisa antes das vidas humanas é o mais verdadeiro ódio contra a população e a sociedade civil. Aqueles que colocados pelo povo no poder a partir do conceito democrático de Contrato Social, estipulado há mais de três séculos por importantes filósofos europeus, não cumprem hoje o seu dever governamental e tratam o próprio povo com descaso e petulância.

É certo que a sustentação dessa crise política e o levante do extremismo ideológico são a desinformação propagada nos meios de comunicação, uma vez que o avanço tecnológico e a consolidação das redes sociais transformaram o campo eleitoral e fizeram com que plataformas digitais passassem de um mero coadjuvante político para o protagonista na difusão de informação em massa. É muito mais fácil a população civil, a qual majoritariamente não possui um letramento digital, ler três linhas de um tweet feito por um influencer com boa oratória e formar sua opinião pessoal do que ler vinte páginas de um artigo científico redigido por um especialista formado, que possui um estudo prévio do tema discutido. Infelizmente, essa é a realidade na qual nos encontramos: existe um crescente engajamento nas mídias digitais de pessoas que não buscam argumentos plausíveis, dissolvem lógicas infundadas e comprometem a visão civil e o debate democrático.

De quatro em quatro anos, o povo tem o direito constitucional de escolher um novo representante. O líder da nação, por sua vez, deve projetar as melhores condições para o país e buscar medidas éticas no desenvolvimento federal. Todavia, o que vemos hoje é um fanatismo ideológico, que vem causando o genocídio e o autoritarismo governamental. Nossos representantes formais devem ser cobrados diariamente por aqueles que o colocaram no alto cargo institucional, visto que, ao contrário do que muitos falam, os membros da gestão instaurada têm mais responsabilidade na comprovação do comportamento Estadista do que a própria oposição. Nossos representantes foram escolhidos para serem exigidos e não louvados.

Em 1945, durante o julgamento de generais alemães e nomes da tortura  nazista, a filosófa Hannah Arendt redigiu o conceito de “banalização do mal”, ou seja, como  a desumanização do corpo individual é ideologicamente justificada pela liberdade de expressão. Passaram-se 76 anos do surgimento desse conceito, mas muitos teóricos ainda utilizam-no para explicar a sociedade capitalista atual. A normalização do discurso extremista que defende a desigualdade social promove a exploração e naturaliza a morte humana; monta um retrato combinativo do cenário contemporâneo e um dos períodos mais cruéis da história.

A problemática que deve ser combatida é a do desrespeito e a da intolerância. O debate democrático se estrutura no conhecimento de visões e ideologias antônimas, que pregam o diálogo conjunto em prol do desenvolvimento comum. Celso Corrêa de Freitas redigiu uma fala de suma importância para o desenvolvimento humano: “Na democracia, o diálogo é a porta mais importante que se abre para o conhecimento, análise e solução dos problemas do cidadão”. Devemos sempre ter em mente que o livre desenvolvimento individual é uma condição para o livre desenvolvimento de todos.

Concluo, com esperança, que o que é visto atualmente no mundo, com o extremismo ideológico, é o mais puro sentimento do medo: medo da sociedade dar oportunidades a grupos minoritários, medo da diversidade intelectual, medo da resistência, medo do progresso. A polarização política vai acontecer até os fins dos tempos – ela prova que somos diferentes e individuais. A discordância é a mais bela e proveitosa prova do Estado Democrático de Direito.


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