Artigo de opinião / Por Júlia Martins em 26 de novembro de 2022
É impossível falar da história do Brasil sem citar os mais de 300 anos de escravidão que nosso país enraizou em sua narrativa. De fato, são três séculos nos quais a economia do país foi baseada na exploração escravista, longos e expressivos demais para não serem incorporados em nossa cultura e sociedade. A abolição da escravidão, assinada em 1888 pela figura emblemática de Princesa Isabel, configura um grande marco na história afrobrasileira, porém o contexto pós-abolição não foi favorável a população liberta, de modo que, até hoje, o desamparo sofrido pelos ex-escravos impacta o cotidiano nacional e torna váçido o questionamento: a escravidão realmente acabou?
O período de escravidão no Brasil compreende o período de 1530, no início da colonização portuguesa, até 1888, no final do II Reinado. Durante esse espaço temporal, o modelo escravocrata, tanto indígena quanto africano, se concentrou no trabalho braçal nas lavouras de cana de açúcar, em virtude da economia de base agroexportadora. Os trabalhos nos engenhos açucareiros e sua estrutura contribuíram para gerar, entre senhores de engenho e seus escravizados, uma relação intimista e uma aproximação entre a casa grande e a senzala, o que não é equivalente à diminuição das hostilidades.
Com a assinatura da Lei Áurea, foi instaurada uma ideia de libertação e, até mesmo, a memória do dia 13 de maio como o principal marco da abolição e da luta antirracista no imaginário social brasileiro. Essa concepção, todavia, pode ser repensada sem esforço se analisarmos a motivação para a implementação dessa lei, o modo como ocorreu e o que se passou após isso. Ao contrário do que é propagado pelo senso comum, o intuito para se libertar os escravos, que já percorria um caminho ao longo do século XIX com outras leis abolicionistas – Eusébio de Queirós, Lei do Ventre Livre e Lei do Sexagenário –, não era centrado na súbita humanização dos pretos escravizados, mas sim na pressão internacional e no objetivo de melhorar relações políticas e econômicas. Também é pertinente elencar que os únicos dois artigos da lei não previam uma assistência social aos negros libertos, o que contribuiu para uma situação de total desamparo, sumarizada na seguinte passagem autoral da pesquisadora Raísa Alves da Silva: “Não é possível ser livre sem terras, sem moradia, sem trabalho, sem respeito.”.
À vista disso, as heranças escravocratas da casa grande e da senzala se infiltraram de forma tão profunda no coletivo brasileiro que causaram sequelas vividas pelo povo negro ainda no século XXI, este que representa 56,1% da população do país. Os papéis étnico-raciais da nossa sociedade estão carregados de semelhança com a divisão trabalhista da época pré-abolição, o que se percebe ao visualizar que cargos de poder e dominação são ocupados por pessoas brancas, enquanto trabalhos de servidão, com enfoque em atividades braçais e consideradas comumente “simples” ou “humildes”, são destinados majoritariamente a pessoas negras. Na contemporaneidade, “a senzala moderna é o quartinho da empregada”, como escreveu Preta Rara em seu livro “Eu, empregada doméstica”.
Uma das principais barreiras para esse panorama é o temido mito da democracia racial e a aversão cultural do brasileiro de reconhecer o próprio preconceito. Como já citado, a reparação retardada aos recém libertos em 1888 fixou-se no corpo social nacional e a inclusão destes cidadãos nas atividades coletivas foi marginalizada a ponto de serem invisibilizados, juntamente com sua cultura, seus direitos e suas dificuldades. Essa invisibilização foi o que banalizou os preconceitos sofridos por eles, uma vez que o processo de miscigenação foi bem mais forte do que a aculturação, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo. Enquanto o costume de negar as discriminações ainda for estruturalmente presente, as relações étnicas de poder não hão de ser solucionadas.
Diante do exposto, podemos sumarizar que é imprescindível uma desconstrução dos padrões sociais de poder do corpo social brasileiro, já que viabilizam a exploração, a desumanização e a inferiorização do povo negro que sustenta a nação em seus ombros desde a Diáspora Africana. O único caminho para lutar contra a estrutura social racista no cotidiano brasileiro é uma reparação governamental para com os afetados pelo legado escravista, o que pode ser feito a partir da continuidade das políticas de ações afirmativas antirracistas. Afinal, é uma questão que teria sido extremamente reduzida caso essa medida estivesse incluída na Lei Áurea de forma mais diligente.
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