Publicado por Lívia Araújo
Em uma de suas obras, o grande teórico Ernst Fischer enuncia: “A razão de ser da arte nunca permanece inteiramente inalterada. A função atual da arte, numa sociedade em que a luta de classes se aguça, difere, em muitos aspectos, de sua função original. Há, no entanto, a despeito das situações sociais diversas, algo na arte que expressa uma verdade permanente. E é isso que nos possibilita, no século XXI, comover com as pinturas pré-históricas e com antiquíssimas canções.” Ao ver a síntese da arte dramatúrgica em frente a meus olhos, tive a confirmação pessoal da tese de Fischer. Há algo de fantástico na arte que não podemos ver, apenas sentir. A arte é transcendental — podemos amá-la, odiá-la, mas jamais negá-la. Da mais complexa escultura barroca à mais simples pintura rupestre, todas têm a capacidade de surtir efeito em nós, é por este motivo que se chamam “artes”. A arte cria, projeta realidades, aprisiona e liberta.
As obras redigidas pelo mestre Ariano Suassuna têm este teor transcendental, no entanto, há uma particularidade em “A pena e a Lei”. Não há como definir essa obra, somente como mergulhar em uma profusão de euforia juntamente a ela.
A peça, baseada no teatro de mamulengos, é recheada de elementos da cultura nordestina, contando com personagens estereotipados e sátiras grotescas que elucidam algo muito maior. É um convite à reflexão acerca da justiça dos homens em contraste com a justiça divina. A obra é a perfeita junção entre o auto sacramental e a commedia dell’arte.
A montagem da peça na unidade da Asa Sul do colégio Único Educacional ficou nas mãos do diretor Rafael de Paula — perfeccionista, atento, um ator impetuoso e imprevisível. É querido por todos — ou, brincadeiras à parte, pela maioria. Ao analisar a peça com um viés organicista — isso é, com cada parte atuando como um órgão —, o diretor Rafael, juntamente ao dramaturgo Eduardo Fernandes, constitui o cérebro da peça, enquanto os atores constituem o coração. Sem o coração, não haveria vida; sem os atores, não haveria peça. A adaptação do texto, consonantemente a inovações particulares, torna a peça singular; a emoção empenhada pelos atores torna-a única.
A fala do personagem Cabo Rosinha, “Ai minha
Nossa Senhora da Conceição dos militares”, juntamente à do personagem Cabo Vicentão, “Minha vocação é criar passarinho, cuidar do alpiste e limpar gaiola (…). Eu quero mesmo é cuidar de um viveiro bonito”, representa a alma do auto sacramental e a comédia de costumes. Com o uso de muito humor e interpretações que levam à catarse do espectador, o diretor atingiu o equilíbrio entre representações estereotipadas e críticas sociais.
As interpretações dramatúrgicas exageradas e estereotipadas incitam o riso, e, ao final, nos levam à reflexão. Molière, precursor do movimento da comédia de costumes que inspirou Ariano Suassuna, jamais imaginaria sua dimensão no imaginário brasileiro, sobretudo no imaginário nordestino, o qual é explorado na peça.
Uma prévia da cópia do texto do intérprete de Cabo Rosinha permite notarmos que o overacting é uma técnica muito explorada pela equipe. O exagero das interpretações, o sotaque forçado e os personagens estereotipados podem desagradar determinados públicos. A arte, contudo, só existe porque nós, espectadores, também existimos — o espectador, por meio do acolhimento, poderá atualizá-la e trazer-lhe novos significados. A obra apenas vira arte quando o espectador “joga o seu jogo” — afetando-o negativamente ou positivamente, não faz diferença, afetando, é arte. Ficar sem (ar)te sufoca!
O diretor Rafael, que conta com muita experiência nos palcos, disse que, ao aceitar tal responsabilidade, o que lhe cativou foi a oportunidade de estar nos bastidores ajudando os atores com menos experiência. A direção que presenciei durante o ensaio foi digna do mestre Suassuna. Como mencionei, o corpo humano não funciona somente com o cérebro, e apenas permanece em equilíbrio com a sinfonia completa de todos os órgãos. Assim, parabenizo os atores, o elenco de apoio, a equipe de cenário e adereços, a equipe de maquiagem, a equipe de figurino e a equipe de sonoplastia. Sem vocês, a perfeita sinfonia dessa obra que estreará em breve não seria completa. Em especial, deixo aqui minhas congratulações ao diretor e meus agradecimentos, em nome de toda a Folha Única, a Rafael de Paula e Eduardo Fernandes por permitirem o acesso ao ensaio.
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