Despersonalização

Despersonalização

Conto por Ana Belle Silva Ramos em 26 de setembro de 2022


Publicado por André Guerino

pintura de uma rua cheia de pessoa e um trem atravessando
Lesser Ury (German Impressionist, 1861-1931) ~ Night Street Scene in Berlin, Leipziger Strasse

Frequento uma cafeteria onde você paga com memórias. Sua porta, imponente, em madeira escura, encara-me com tamanha avidez que sinto um arrepio subindo-me as costas. Ao entrar, logo percebo sua decoração à moda antiga, com mesas de canto, balcão e cadeiras em madeira entalhada, as mesas pintadas como um jogo de xadrez, preto e branco, mas sem peças para jogar. Uma visão tão, tão solitária! É um lugar de atmosfera taciturna, onde as ideologias se manifestam. Imutável, assim como os sonhos mais esperançosos ou os desejos mais profanos.

Uma xícara de café me custou onde eu estaciono meu carro. Um pedaço de bolo, qual era o nome do meu gato. O pior de tudo era o fato de que você nunca saberia qual seria a próxima. Sentado à mesa mais próxima do balcão, meus devaneios tomam conta de mim. Estranhos vêm e vão, julgando e sendo julgados.

Horas se passam, o café esfria, perde o sabor, junto com sua essência.

Sinto que um humano sem memórias perca sua essência, também. Do pó ao pó.

Nos últimos dias, fiz severos auto retratos, como garantia que nunca me esqueceria de mim mesmo, mas as pinceladas se desencontravam cada vez mais. Pinceladas selvagens, tortas, fracas e hesitantes. Todos os dias comparava a que eu havia feito com a do dia anterior, e cada vez a diferença ficava mais grotesca, até que eu já não me familiarizava com minha face, meu corpo. A única coisa que permanecia eram aqueles grandes olhos pretos.

Talvez eu nunca deveria ter desafiado aquele Deus.

E isso ele nunca me deixará esquecer.

Nossa barganha foi simples: eu tinha algo que ele queria, e ele tinha algo que eu queria. Deus tinha o “viver” para me dar, pois não gosto da vida, mas de viver, e isso sem ser interrompido pela morte, que também não me agrada. Esses pensamentos, embora pareçam contradições, após longos dias, tornaram-se dignos de uma explicação quase compreensível: a vida é o seu trajeto desde o nascimento até o dia em que se torna comida para vermes; o caixão é o único lugar em que se pode descansar sem a preocupação com o que farei depois. O viver, contudo, é feito de sensações, algo mais profundo que seguir a linha tênue de uma linha do tempo. As sensações são atemporais e perpétuas.

Todavia, Ele colocou um empecilho em meu caminho: a cafeteria que me faria esquecer, em breve, até da minha individualidade. 

Logo, esquecerei disso tudo também. 

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