Divulgação científica

O reflexo da insignificância

O reflexo da insignificânciaYour Attractive Heading

Divulgação científica por Letícia Vaz em 24 de novembro de 2022


Publicado por André Guerino

Quadro “Narciso – Caravaggio” Reprodução: Stick

Filho de Cefiso e Liríope, Narciso nasceu com uma beleza exuberante. Representado pelas pinturas com cabelos dourados e sedosos, pele clara e acetinada, nariz redondo e rosto completamente proporcional, como se a razão áurea se projetasse totalmente em seus traços. Sua mãe, admirada pela obra de arte viva que carregava em seus braços, procurou por uma sábio da época, Tirésias, lhe questionando se seu filho chegaria à velhice, com apreensão, pois o motivo da ruína de diversos heróis gregos era, também, a razão de seu triunfo. O sábio capaz de ter conhecimento acerca do futuro disse que, sim, seu filho viveria muito, no entanto, não deveria se ver, olhar seu reflexo. O belo bebê, assim como suas feições angelicais, cresceu e acumulou admiradores, que nutriam paixões descomunais pelo rapaz.

Em um determinado dia, enquanto caçava pelas montanhas, foi visto pela ninfa Eco que, como todos os outros seres, havia se deleitado pelo jovem. Eco era castigada pela deusa Hera, por ter sempre a necessidade de ter o voto final, de dar o palpite acatado por todos, passaria a eternidade repetindo sempre a última palavra proferida por qualquer que fosse a pessoa. Dando origem à acepção do termo “eco” como usada nos dias atuais. 

Narciso ouviu os sons apaixonados da ninfa reverberando em sua direção e decidiu se aproximar, o ser fantástico ficou, então, diante da graciosidade do garoto, tentou despejar todo seu amor, mas foi rejeitada. Eco fugiu até a caverna mais próxima, onde ficou até o findar de seus dias, definhando na solitude de seus sentimentos não correspondidos. Diante de tal sofrimento da ninfa, Narciso foi condenado por Nêmesis, deusa da justiça e da vingança, para que não ofertasse a mais ninguém um amor que não fosse ser correspondido e fizesse sofrer. Caminhando em direção a uma fonte quase translúcida, decidiu deitar-se um pouco e descansar. Olhando para a água, o castigo da deusa se efetivou, Narciso ficou encantado por seu rosto refletido na água, mas era impossível tocá-lo, toda vez que o fazia, a imagem refletida desaparecia. Ele era incapaz de amar, apenas de admirar. Hipnotizado pela imagem, passou anos ali, naquele ciclo incessante de unicamente observar e acabou falecendo pelo enfraquecimento de seu corpo. As ninfas choraram pela morte de Narciso, mas diferente do fim trágico que se aguardava para seu corpo, se deteriorando sem nenhum constrangimento a todos que quisessem ver, a carne desapareceu e foi substituída por uma flor. 

Os mitos gregos, a exemplo de Narciso, não são histórias necessariamente verdadeiras, mas que ajudavam os antigos gregos a compreender o mundo que os rodeava, bem como ter uma noção, ainda que incompleta, de si próprio. Posteriormente, com um maior aprimoramento da ciência e a tipificação do conhecimento, algumas áreas usaram as narrativas gregas para o auxílio na compreensão de alguns eventos que buscavam embasamento científico. Muito do que hoje se conhece como Psicologia, a ciência ramificada que se debruça a compreender o comportamento e questões que perpassam o ser humano, teve como base de análise este aspecto da mitologia da Antiguidade Clássica. Na contemporaneidade, a interpretação do texto é de que se voltar a apenas uma parte da realidade, pode acabar limitando sua visão de mundo e experiências, delimitando uma barreira na vivência, construindo uma metáfora para a morte. 

O termo narcisismo e todas as compreensões a partir dele, de alguma forma foram influenciadas pela alegoria do lindo jovem grego que morreu admirando a si no reflexo da água. Baseada nas significações relacionadas ao eco do ser humano sobre sua individualidade, Freud, personalidade influente no campo da Psicologia, propõe a Teoria das Três Feridas Narcísicas, que se fundamenta na ideia de que o ser humano ao longo do tempo histórico teve que suportar das mãos da ciência três grandes atentados contra seu frágil e ingênuo amor próprio. O primeiro foi a descoberta de Copérnico, quando a humanidade descobriu que a Terra não era o centro do universo, apenas uma pequena partícula diante de todo um infinito, perante a um sistema universal de tamanha magnitude que beirava o inconcebível para as mentes da época. Pensar que a Terra não era o âmago de todo o que se entendia como existente feria o ego, dilacerava o pensamento individualista influenciado pela Igreja Católica que colocava o homem como criação máxima e divina, como se tudo fosse apenas palco para a obra humana. O universo condenado a assistir eternamente a humanidade. 

A segunda ferida se forja com a investigação biológica do homem, que roubou a aparente superioridade do ser humano sob a especial formação, repreendendo-o ao rótulo de Reino Animal e sua natureza bestial irrevogável. A evolução proposta por Darwin reitera tudo o que a sociedade da época negava com rigor, a espécie humana como se conhece é apenas resultado de anos incontáveis de adaptação ao meio e mudanças necessárias para a sobrevivência, não há muito mérito na capacidade cerebral, já que é apenas o resultado de uma série histórica de estímulos e respostas ao ambiente exposto. 

O terceiro e mais irritante insulto, ainda estudado e compreendido, é arremessado em direção à mania de grandeza da espécie, nele se busca provar que o “eu” nem sequer é mestre de seu próprio lar, mas que na verdade é dependente da informação, ainda que escassa, a respeito do que acontece em áreas que não possui acesso direto, ou seja, nenhum indivíduo é auto suficiente. O ser humano tem como uma de suas características mais marcantes a necessidade de estar com seus semelhantes, de partilhar sua efêmera existência ao lado de outros, afundando o ego ao subterrâneo humano. 

As proposições de Freud, ainda que existam falhas, causadas pela falta de método e evidências que as tornem realmente científicas, foram adotadas por muito tempo no meio acadêmico. Os erros encontrados nas quais, mesmo na eventualidade de as liquidificar, é importante material memoroso pois foi o pontapé inicial para que outros começassem a se interessar e pesquisar sobre, propondo ideias com base em métodos. 

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