Resenha por Caroline Cordeiro Dobranszki em 11 de setembro de 2024
Publicado por Analice De Geraldo
Mesmo que produzido durante o século XIV, em 1864, o livro reflete fortemente em sua essência a literatura do século XX, o ideal expressionista e todo o desprezo pelo belo e ideal. Na verdade, pode ser considerado um esboço em texto do estado psicológico de seu autor, Fyodor Dostoevsky, quando escrito. As marcas do pessimismo e desencanto são reflexos de sintomas advindos de sua vida real após o adoecimento e perda de sua esposa, somados à sua delicada situação financeira na época. O personagem principal é a personificação de suas angústias, um desiludido infeliz que insiste em negar as “sutilezas do belo e sublime” e prefere viver no abismo de sua própria “consciência hipertrofiada”. A ausência de esperança e insatisfação constante perante situações cotidianas provocam um efeito quase cômico à narrativa, mas a peculiaridade da mente do homem instiga uma curiosidade inegável no leitor que, se não cede ao desafio de compreender a mensagem não tão acessível e intuitiva dos versos intensos, é incapaz de tirar os olhos das páginas na expectativa do que vem em seguida.
O livro é constituído por duas partes principais, uma onde são depositadas ideias e impressões, “O subsolo”, e “A propósito da neve molhada”, que é narrativa.
A primeira parte, mesmo que majoritariamente reflexiva, é escrita em tom curiosamente provocativo, com inúmeras passagens onde o personagem afirma sua indiferença em parecer ridículo, dirigindo a palavra em forma de confissão ao leitor. É de uso para maior compreensão sobre a profundidade da personalidade construída e sua conexão com seu idealizador, já que o personagem, assim como o autor, é sentimentalista, intenso, sente em excesso, uma representação do ser com suas capacidades emocionais expandidas, incapaz de manifestar seu lado empático por responsabilidade de suas circunstâncias. Além disso, é também na primeira parte que o subsolo é introduzido.
Mas o que, afinal, é esse tal de subsolo?
A lógica começa com a definição de dois divergentes arquétipos: o homem de consciência hipertrofiada (teórico), e o homem de ação (prático). O primeiro é fadado a sempre invejar o segundo. O contrário geralmente não ocorre porém, uma vez que o homem de ação não se preocupa em refletir sobre si mesmo. Esse, aceita as convenções, não questiona, lidera, mas é incapaz de profunda compreensão sobre a realidade e suas nuances. O ressentido homem de consciência hipertrofiada é passivo, luta contra as convenções e até mesmo contra as leis da natureza, questiona, bate contra “o muro da limitação” em vão, se revolta contra o imutável e não encontra sujeito para a quem culpar suas frustrações. O subsolo surge no momento em que o primeiro homem não suporta mais o peso do viver e se isola tal qual um camundongo indefeso, com mágoas acumuladas que transbordam, liquefeitas e esmagadoras. O subsolo representa o abismo, o vazio permanente da mente sensível. É o ambiente de escapismo que o personagem adota e onde afirma residir eternamente. Todo o contexto do livro gira em torno de sua permanência no subsolo consciente.
Por que as pessoas amarguradas passam a ser do jeito que são? E até que ponto a tendência à taciturnidade limita-se à personalidade e não a fatores externos? O homem sem nome foi claramente maltratado pela vida, alvo de má sorte evidente e convergência de acontecimentos importunos, mas seria isso desculpa para sua conduta perante o mundo? Não seria a desistência, a tentativa de suprimento das emoções, a conformidade com o escárnio, talvez, uma forte prova de covardia e fraqueza pessoal do personagem? E até que ponto essa conduta é encontrada em nós mesmos?
A expectativa do leitor sobre o caráter do homem retratado é constante, até a chegada do final do livro. Depois de totalmente desiludido sobre esperança de salvação, o leitor prevê a conversão do personagem ao bom e admirável após um acontecimento marcante que demonstra seu lado bondoso. Paradoxal o fato de um livro relativamente sombrio provocar sentimentos tão sutis em algumas passagens sobre família, felicidade e honra. Porém, a ideia de final salvação é esmagada pelos acontecimentos que se seguem, onde o autor comprova sua teoria de que a natureza do ser é impassível, nunca mutável, e, mais uma vez, o homem nos decepciona com sua maldade. O livro brinca com o leitor incessantemente. Mostra, a partir de reflexões prévias, que contradizer as conclusões mais sensatas da nossa razão a respeito de vantagens diversas conserva-nos o que é mais caro: nossa personalidade e nossa individualidade. Ao mesmo tempo, o preço dessas características humanas é alto. Assim como a constante contradição, a eterna imoralidade e a falta de bom senso são consequências sólidas que acompanham a autenticidade do ser “bípede ingrato”, que por ter tendência natural à criação tem também por vontades que o desviam da lógica. Onde já se viu se orgulhar da própria miséria e, ainda, zombar da possível possibilidade de ascensão pessoal?
A partir do exposto, pode-se dizer que Memórias do subsolo é um convite autêntico ao abstrato e ao ontológico. Mesmo que associado a correntes racionalistas, adotado e admirado por ateístas, vejo o livro como uma grande ironia do autor sobre o próprio contexto descrito e sua mensagem como exatamente o contrário do que representa. O desastre que é a natureza do homem do subsolo instiga o leitor a querer ser uma pessoa diferente da descrita, gera o efeito inverso das inspirações comuns. A melancolia frequente das constatações elabora o desprezo pelo pessimismo descrito, motiva a desobediência das regras que definem o ser como imoral e promovem indiretamente, ainda, a urgência social pela intensificação da prática do altruísmo. Nesse sentido, Memórias do subsolo é um convite também a necessidade do belo, do cultivo de emoções puras, do perdão e da necessidade da arte contemplativa e não racionalizada como forma de ampliação da representação do íntimo humano, meio de extrapolação de nossas limitações tangíveis. Sentimentos bons podem e devem ser potencializados por meio de criações humanas. Assim, como última ideia, a existência e vida do homem de consciência hipertrofiada como reflexo de todos nós, é, por fim, evidência de que, com o objetivo de alcançar a felicidade efetiva, todos buscamos e devemos buscar, interminavelmente, por algo que não se resume ao absoluto de nós mesmos.
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