Frederico Lins – para os amigos, “Fred” – era um rapaz como muitos outros; vivia num apartamento modesto que seu modesto curso de administração lhe rendeu quando conseguiu uma modesta vaga numa não tão modesta empresa de seguros. Tinha ele 27 anos e morava sozinho. Na verdade, vivia na companhia de um gato – Van Gogh -, um vira-lata que foi encontrado ainda filhote, miando perdido no meio do estacionamento de um shopping movimentado. Van Gogh não tinha nada que chamasse muita atenção; nada além de um pequeno corte que arrancara um pedaço de uma de suas orelhas – o que acabou lhe rendendo o seu nome. Quanto ao Fred, ele não tinha nada que chamasse atenção mesmo.
Certa vez, em seu trabalho, um colega seu – Raimundão – chamou-o de “Cestinha”, por causa da sua incapacidade de acertar a lixeira ao arremessar uma bola de papel. Não eram muito diferentes os outros dias: acordava, tomava o café da manhã no caminho pro trabalho, conferia dados, almoçava, continuava o trabalho, ia pra casa, esquentava um resto de pizza congelado e dormia; e não foram muito diferentes até o dia em que teve uma ideia.
Nascida num banho, como todas as boas ideias, sua invenção era um conceito bem simples: sorvete em cubos. Ao contrário do que muitos pensavam, o negócio de fato começou; pediu demissão, pegou um empréstimo e montou um quiosque num centro comercial. Escolheu o melhor nome em que conseguiu pensar: “Ice Cubes”. No entanto, não se pode dizer que fez tudo sozinho; teve ajuda de um amigo formado em química, o Paulão, que não lhe pediu muito além de um trocado.
Ao contrário do que muito mais gente pensava, o negócio, então, decolou. As pessoas ficavam curiosas com a sobremesa cúbica e todos “postavam” em suas redes sociais. Ice Cubes virava moda; faziam-se filas e aumentava-se (discretamente) o preço. O que era um quiosque, graças à ajuda de certos produtores de conteúdo na internet, virou uma loja; e não tardou muito até que a loja virasse rede.
Agora algumas coisas mudavam na vida de Fred: o apartamento modesto transformou-se em uma casa nada modesta; o emprego modesto agora era o de seus funcionários; e tudo isso fazia seu curso não parecer mais tão modesto assim. Van Gogh agora tinha uma coleira com um pingente brilhante e comia uma ração de embalagem quase tão brilhante quanto. Fred começou a ficar famoso, ganhando mais dinheiro e conhecendo mais gente, até que foi chamado para participar de um programa de entrevistas num grande canal da TV aberta.
Antes da entrevista, ele se preparou para todas as perguntas possíveis: estudou sobre sabores de sorvete, economia, ponto de fusão, revisou sua trajetória, aprendeu tudo sobre cubos – decorou até a relação de Euler para poliedros-, planejou alguns trocadilhos e treinou um sorriso confiante. No dia da entrevista, não lhe perguntaram a relação de Euler; em vez disso, a entrevistadora o deixou pensando ao fazer a seguinte a pergunta:
— Do quiosque até a rede, o que mudou na forma como você vê o mundo?
Nesse momento, Fred olhou para a plateia enquanto procurava uma resposta. Então, um grito escapou de sua boca, sua pele tingiu-se de um palor de baunilha e seus olhos saltaram como quisessem fugir de seu rosto.
— O que foi? O senhor está bem? Precisa de algo? — perguntou, em desespero, a anfitriã.
— Não, obrigado. Eu estou bem… apenas preciso de um copo d’água; desculpe — disse, enquanto tentava se esquecer da imagem que vira por um flash.
A entrevista havia sido cortada, mas aquele pedaço de segundo se repetia como um filme de uma cena só em sua cabeça. Por isso, depois de alguns dias, chamou seu amigo Paulão para tomar um café e conversar um pouco. Como o programa ainda não havia ido ao ar, o amigo ainda não estava ciente da condição de Fred, que fez questão de reportar todo o evento.
Primeiro o convite, depois o camarim, aí o programa e, então, a pergunta. Depois da pergunta, falou de seu pesadelo enquanto ainda acordado:
— Não durou mais que 1 segundo, foi tipo um flash. Eu pisquei e vi uma cena que me assusta até hoje: a plateia toda estava… seus rostos… simplesmente sumiram. Foi tão horrível e tão real… — disse enquanto olhava para as bolhas beges em seu café escuro tentando tirar a imagem da cabeça.
Fred ouviu o outro dizer alguma coisa; não dizer, mas fazer um barulho semelhante a um zumbido, o “hum” de quem responde, mas não tem palavras. Quando voltou seus olhos para o companheiro, gritou como no auditório, pulou ,afastando sua cadeira para trás, e sentiu o desespero profundo de quem vê o fino tecido da realidade ser roído pelo rato horrendo do impossível.
Assim como naquele dia, o rosto do outro desapareceu. Seu cabelo sumia, deixando uma lisa careca; sua testa sem rugas nem sobrancelhas; seus olhos encobertos por uma camada fina de pele que deixava transparecer um volume esférico, como se as pálpebras se emendassem e os aprisionassem; seu nariz sumia como se retraísse inteiramente, deixando-lhe os dois buracos das narinas; seus traços, músculos do rosto, bochechas… tudo tinha a mesma textura e tudo era liso, como se fosse algo semelhante a uma semiesfera; seus ouvidos, como o nariz, deixavam apenas os orifícios; sua boca estava hermeticamente fechada, como se os lábios fossem colados e vedados, de forma que restasse apenas uma camada de pele, que, assim como nos olhos, deixasse transparecer um pouco a forma dos dentes ao se esticar quando ele tentava falar algo. Um corpo completamente calado de uma alma completamente distante; o horror de um sofrimento eternamente alienado. Era tão distante e tão horrendo, que Fred se esquecia de quem era a pessoa com quem estava falando. Quando se assustou, a coisa tentou fazer algum barulho e segui-lo, mas, antes que pudesse entender o que acontecia, Frederico já estava fora da cafeteria, correndo o quanto podia.
Ao correr pela rua, esbarrou-se em alguém que passava caminhando. Virou-se para se desculpar e percebeu que era mais uma daquelas coisas que ele havia visto. O rato roía um pouco mais o tecido. Correu ainda mais rápido e chegou num shopping. Lá, sentou-se numa área mais reservada e chamou um carro pelo aplicativo. O carro chegou e ele se sentou no banco de trás. O motorista fez o mesmo zumbido da coisa com quem tomara café mais cedo e se virou para trás. A cada grau do arco que a cabeça descreveu, Fred sentia o frio subir a sua espinha. Quando terminou, o empresário viu que o motorista era também uma “coisa”, o que o fez imediatamente tentar abrir a porta desesperadamente. Estava trancada. O desespero se instaurava no ambiente. A coisa não parecia apresentar ameaças, mas tentava alcançá-lo, fugir de dentro de seu corpo inerte, lutar contra as camadas de pele que o seguravam; e isso já era o suficiente para causar pânico. Depois de alguns segundos encarando, a coisa teve piedade e decidiu destrancar o carro. Fred fugiu, decidiu ir a pé para casa.
Chegando à sua mansão, fechou-se em seu quarto e foi dormir. Ao acordar, aliviou-se ao ver o noticiário. Era tudo um pesadelo, os âncoras tinham rostos normais, eram pessoas normais. Ficou assustado ao se lembrar de como as memórias pareciam reais, enquanto tentava remendar o tecido da realidade. Notícias sobre o presidente, sobre algum ativista famoso, sobre certo ator de novela… até que…
Ele ficou paralisado. Seus olhos imóveis e lacrimejantes, as mãos tremendo incessantemente enquanto segurava o controle e o queixo caído como se pendesse em seu rosto. Todo o tecido remendado agora rasgado como um vestido em um beco escuro numa noite vazia.
— Não… Não poderia ser, mas era o que era; simples e estonteante como só a verdade pode ser. Na hora das notícias locais, uma reportagem sobre um bairro pobre na zona sul da cidade – seu antigo bairro “modesto”. Os entrevistados iriam falar de algum assunto. Que assunto? Não sabia. Eles não tinham vozes, pois não tinham bocas. Ele não se lembrava de nenhum deles, pois não conseguia ver quem eram, já que lhes faltavam rostos. Eram todos iguais… todos amorfos… eram nada mais que coisas. Apenas pequenas partes de um todo muito mais distante de sua realidade e menos alienado que ela – a massa.