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Três dias na terra

Três dias na terra

Contos e crônicas Por Marina Morena, em 24/03/2020

https://www.ac24horas.com/2014/05/08/nasa-transmite-imagens-da-terra-vista-do-espaco-ao-vivo/

X4 era uma menina como outra qualquer. Adolescente, via muitas séries, lia livros, tinha “crushes” (mais em personagens do que em pessoas reais), ia a festas, dormia, comia, respirava, fazia drama por nada, menstruava, etc e tals. 

Ela vivia em uma cidade chamada Brasólia. 

Brasólia era uma bolha. 

Assim, literalmente, uma bolha. 

Eu não vou entrar em mais detalhes sobre como isso foi possível, até porque são complicados e irrelevantes para essa narrativa. Entretanto, o que eu posso contar é que, depois de todo aquele fiasco humano da desenfreada destruição da natureza e de tudo que os homens conseguiam tocar, as maiores mentes do meio científico se uniram para criar uma forma da raça humana continuar a prosperar, mesmo que não pudesse mais habitar o solo terrestre. 

Claro que essa solução só cabia para quem conseguia pagar, mas esse não é o ponto ao qual eu estou tentando chegar. A questão é que a solução foi massivas bolhas flutuantes que orbitam a Terra e que carregam cidades inteiras dentro delas. 

E Brasólia é uma dessas cidades-bolhas. Porém, ela é diferente das outras bolhas; ela é uma bolha-mãe, isso significa que ela comanda o território terrestre do seu país, além de várias outras bolhas, no quesito político, ou pelo menos dizia comandar. Na verdade, há quem argumente que é mais uma questão de parceria, até porque só as cidades – ou as partes dessas cidades – mais ricas viraram bolha e, como todos sabem, dinheiro é poder e iguais geralmente querem as mesmas coisas. De qualquer modo, vocês devem estar se perguntando o que aconteceu com o povo  que ficou na Terra. Bom, muita coisa aconteceu com eles. Fome, sede, guerras (por água e alimento), mortes geradas pelas mudanças climáticas, por epidemias, furacões, mortes por motivos idiotas e totalmente tratáveis, que acabaram acontecendo porque maior parte do dinheiro público ia para as bolhas; não só para a construção delas, mas também para o bolso de quem morava nelas, naturalmente. Além de muitas outras coisas horríveis. No entanto, mesmo correndo 

o risco de soar insensível, eu vou tentar resumir a situação terrestre dizendo que, basicamente, para a maior parte da humanidade, ficar no solo e lutar para sobreviver com a “ajuda” de quem mora lá em cima era tudo que eles podiam fazer. 

Quando os governos estavam criando suas bolhas, eles perceberam que não poderiam simplesmente mandar os mais ricos e poderosos para o céu, eles tinham que mandar os intelectuais também, até porque, sem eles, nem bolha existiria. Então, os mais brilhantes engenheiros, biólogos, químicos, físicos, astrônomos, etc. foram convidados a morar na bolha. Porém, como a vida passaria a ser monótona sem escapadas para poder desfrutar de prazeres terrestres como ir à praia ou esquiar, governos começaram a recrutar os maiores escritores, filósofos e atores. Além deles, havia alguns sociólogos e antropólogos, mas esses só estavam lá para mostrar a ONU que as bolhas se importavam com quem estava na Terra. 

Os avós de X4 eram uns desses sociólogos que estavam na bolha a pedido da ONU e seus pais continuaram na profissão para que pudessem permanecer na bolha. Sua mãe foi designada a descer a Terra por alguns meses para estudar os terrestres restantes depois de 100 anos da bolha. A princípio, a mãe de X4 desceu sozinha enquanto ela ficava na casa do pai, mas, depois de alguns meses, a pedido de sua mãe, e felizmente para a continuidade dessa história, X4 desceu a Terra para uma visita que durou três dias. 

O primeiro dia correu até suavemente, X4 pensou. Eles têm até wi-fi na Terra. Ela achou que ia ter que acabar ficando no meio de sucatas e cidades abandonadas consumidas pelo mato com alguns moradores que caberiam nas representações dos tais mendigos que as fotografias antigas das sociedades humanas tanto retratavam como um dos tais problemas sociais. 

(Lembrando que as bolhas não apresentam esse tipo de problemas, já que no mundo pós-aquecimento global só existem essas questões na Terra) 

Porém, não comecem a levar isso para o lado errado, X4 não falou de uma forma tão petulante quanto a que você possa ter imaginado. Ela sabia dos sofrimentos terrestres, todos os moradores de bolhas sabiam, e se sentia terrivelmente mal por eles terem que passar por todas essas adversidades. 

Ela sabia que não era justo que nenhum ser humano vivesse nessas condições e ela também sabia o quão sortuda era. Todos ao seu redor sempre fizeram questão de lembrá-la de seus privilégios. A escola, a internet, a família e os amigos. De uma forma ou de outra, ela não podia deixar de ver a redoma ao seu redor, não podia esquecer, mas isso não significa que ela saberia como lidar com o exterior. Por isso, ela estava tendo todas essas preocupações, mas acabou que, aparentemente, a antiga classe média (pobre demais para o céu, boa demais para a Terra), agora chamada de Rasante pelos estudiosos, tinha construído casas flutuantes em lugares que ainda conservavam a antiga beleza exuberante da Mãe Natureza. 

Então, durante o primeiro dia, X4 teve um tour pela propriedade e foi se enturmando com os jovens da sua idade. Eles não eram assim tão diferentes, até porque os Rasantes tinham semelhanças quando se tratavam de séries, famosos que seguiam nas redes sociais e gostos em geral. Até porque os rasantes poderiam não ser moradores do céu, mas tampouco iriam se considerar meros terráqueos. Sinceramente, como alguém poderia confundi-los se os visse na rua? Como você poderia achar que um ser humano de pele e osso parece outro ser humano de pele e osso? São claramente diferentes. Alguns deles têm MePhones. 

Mal sabiam os Rasantes que eles não eram os únicos que desejavam se parecer com os celestiais da internet. Os celestiais também queriam se parecer com eles mesmos. Inclusive, X4 era culpada desse crime. o cabelo cacheado e a pele mais escura não eram muito comuns de onde ela vinha, mas neste momento ela não se importava; na Terra, ela era uma deusa. 

No entanto, foi só no segundo dia que as coisas começaram a ficar interessantes. Foi o dia em que sua mãe fez questão que ela passasse o dia com ela em uma cidade terrestre. Aparentemente ela ainda não tinha tido contato com a real Terra. O que foi engraçado para X4, porque ela achava que já tinha visto o suficiente da Terra para 3 vidas celestiais e só queria ficar no hotel terminando de ver sua série. 

X4 acabou tendo que ir e, enquanto caminhavam pelos asfaltos rachados por gramíneas, foi observando prédios cobertos de musgo, com pessoas vestidas com roupas humildes e casuais, mas que, conforme X4 foi notando, tinham utilidade prática: eram ótimas para o trabalho árduo e braçal, mas também os protegiam de possíveis imprevistos ambientais, como chuvas aleatórias ou mosquitos vetores de epidemias. 

Entretanto, enquanto X4 caminhava pelas ruas, o que mais a deixou curiosa foi a decoração. Ao que parecia, o dia 5 de novembro, o dia em que ela estava lá, era um feriado de extrema importância na Terra. Sua mãe contou que, depois que as bolhas partiram, aconteceu uma festa. Os desinformados passaram a informação de que finalmente o mundo estava livre de patrões e empregados, de donos e escravos. Era um mundo sem restrição, as mansões eram finalmente dos pedreiros que as construíram e das empregadas que as mantiveram. Não existia mais 

elevador de serviço ou acordar 4 da manhã para esperar o ônibus passar. Ou, pelo menos, era o que os infelizes desavisados achavam. 

Os nomes dos riquinhos esnobes agora também não eram mais deles. Foi por isso que, sua mãe explicava, agora maioria das pessoas que moram na Terra tem nomes como Beethoven, Mozart, da Vinci, Marie Curie, Mary Shelley e Michelle Obama. Maioria delas não sabe quem são esses seres humanos notáveis, eles só abriram o Google e pesquisaram pessoas incríveis na história ou então eles escolheram os nomes de seus patrões. (Isso chocou X4 um pouco, porque, pelo visto, era um pouco incabível que terráqueos tivessem acesso à internet) 

Porém, o que os terráqueos não sabiam é que os moradores do céu resolveram se desapegar da Terra e das coisas mundanas por completo, inclusive quando se tratava de como se chamavam, até porque, se fossem visitar a Terra ou se algum ganhador da loteria fosse visitar o céu, teriam que poder se diferenciar, obviamente. Então, agora tinham nomes que eram letras que representavam cada família e números de identificação que seguiam. 

(os celestiais normais usavam letras do alfabeto romano e os mais ricos, o alfabeto grego) 

Foi a mesma coisa com o dia 5 de novembro ao que tudo indica. Alguém tinha visto um filme que mostrava uma rebelião contra o governo e o cara com uma máscara que falava dessa data. Essa pessoa achou apropriado e conveniente usar esse dia como o feriado da Independência Terrestre. 

“O 5 de novembro é reservado para que todos reflitam sobre como os celestiais e os terrestres se adaptaram e vivem na falta um do outro e como ainda são importantes um para o outro.” Ou seja, a data serve para os terráqueos fazerem piadas e zombarem de como os celestiais vivem agora sem alguém para servi-los, limpar suas casa e cuidar de suas crianças e também para ouvir os discursos sinceros nos quais os líderes das bolhas falam sobre como os terráqueos são vitais para a espécie humana e como os celestiais não viveriam se não fosse a generosidade deles de plantarem, colherem e compartilharem sem pedir nada em troca. 

Depois de toda essa aula e de um dia cansativo num mundo destruído, para dizer o mínimo, o terceiro dia finalmente chegou. 

X4 estava surpreendentemente um pouco triste de ter que voltar para o seu mundo de mármore branco e vidro. Mas, aparentemente, a sua mãe não achava que as suas experiências terrestres até esse ponto tinham sido o suficiente. Ela tinha mais uma surpresa. 

Sua mãe a chamou na sala, ao seu lado havia uma menina e um menino que pareciam ter mais ou menos a sua idade e que sorriam e conversavam com sua mãe em um sotaque típico dos terráqueos comuns. 

– Filha, deixa eu te apresentar Rubem Fonseca e Marina Colasanti. Seus primos. X4 só conseguiu arregalar os olhos e deixa a mandíbula cair. Como assim primos? Ela não tinha primos. Ela tinha sua mãe, seu pai e ela. Claro que ela também tinha tido seus avós, mas eles já haviam morrido. E ninguém nunca disse nada sobre tios-avôs ou tios, muito menos sobre primos! 

O que X4 não tinha levado em consideração durante todos os seus 16 anos de vida é que todos os celestiais vieram da Terra. 

Parece algo estúpido de se constatar a essa altura do campeonato, mas a não ser que você fosse realeza, na época pré-bolha, o fato é que você muito provavelmente vinha de um lugar pobre terráqueo. 

X4 finalmente se recompôs e sorriu para seus primos, era tudo que ela podia fazer nesse momento. Ela não sabia nem qual número dar a eles. Seria algum deles o verdadeiro X4? Talvez um X5 e X7 ou um X27 e X48, não tinha como saber. 

Eles passaram o resto do dia juntos. Sua mãe e seus primos conversaram bastante sobre o resto dos familiares e as diferenças da vida na Terra e no céu. Sua mãe parecia extremamente confortável e levava uma conversa com terráqueos como se fosse algo normal. Já X4 só conseguiu sentar e ouvir, quando ela entendia o complexo dialeto terrestre, sobre a situação terrestre atual. 

Eles falavam dos desastres naturais e do ambiente praticamente pré-histórico no qual eles tinham que lutar para sobreviver de forma tão natural. Eles estavam à mercê da mãe natureza, ultrapassavam seus limites para plantar mais que o necessário e retirar à força mais do que a Terra podia dar a fim de alimentar os celestiais. 

Enquanto X4 e sua mãe estavam fascinadas pela vida terrestre, ouvindo atentamente sem que pudessem fazer nada para conter o olhar de dó e piedade que permaneceu nos seus rostos até a hora de X4 ir embora, Rubem e Marina se sentiam um pouco como animais em um zoológico. Sua tia os estudava e perguntava mais sobre sua vida do que sobre a dela com aquele sotaque estranho que emanava um ar de nariz empinado. 

Rubem achava ótimo que pelo menos alguns celestiais tinha coração e tinham interesse pelos terráqueos, não só pelo que eles podiam tirar deles por uma 

pequena quantidade de dinheiro. Já Marina estava com raiva, sua tia achava que ela podia só sentar lá e dissecá-los como se fosse criaturas selvagens e depois voltar para sua bolha, escrever um relatório, talvez até falar o quão horrível a Terra é e achar que fez sua parte e os ajudou? E sua prima a olhava com aquela cara de idiota incrédula – nas palavras dela, não nas minhas – como se ela não pudesse acreditar que eles eram da mesma espécie. 

A conversa se prolongou até a noite quando X4 pegaria seu voo. X4 não iria mentir e falar que ela não estava feliz de deixar a Terra com seu cheiro de desastre, tristeza e esgoto para voltar para sua bolha com cheiro de limpa (ou de fortes produtos de limpeza dependendo do seu ponto de vista), mas ela sentiu algo quando subiu naquele foguete. 

Assim que ela chegou a casa, sentou na sua cama, abriu a internet e procurou documentários e artigos sobre a vida terráquea e o que ela podia fazer para ajudar. Ela foi realmente comovida pelo que viu e ouviu de Reinaldo? Ronaldo? Marinha? Maria? Ela já não se lembrava, os nomes soavam todos igualmente esquisitos. De qualquer jeito, ela queria ajudar e responder algumas dúvidas que a viagem muito longa de 1 hora a obrigou a pensar sobre. 

Então, ela pesquisou bastante para tentar entender, sem sucesso, por que os terráqueos se submetiam às demandas dos celestiais e até as dos rasantes. Talvez fosse porque os celestiais tinha dinheiro e armas? Mas quem lutava suas guerras eram os terráqueos. Talvez fosse porque eles precisassem dos celestiais também? Mas ninguém precisa desse tipo de tratamento. Talvez fosse porque sempre foi assim e eles não sabiam como mudar ou se era possível mudar? 

Quando a madrugada chegou, X4 resolveu ir dormir, ela tinha decidido: não entendia a configuração do mundo em que vivia e que não podia fazer nada pelos terráqueos. Ela atribuiu as duas questões ao fato de ser muito nova, afinal, era o argumento que os mais velhos sempre usavam e, por serem mais experientes, eles com certeza devem estar certos sobre tudo. Então era melhor nem pensar nisso. Quando ela fosse mais velha ela ia poder fazer uma diferença… 

Ela nunca fez, mas pelo menos era educada sobre o assunto. 

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Marina Morena

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