Entre versos e melodias: a canção
Qualquer canção de amor
É uma canção de amor
Não faz brotar amor e amantes
Porém, se esta canção
Nos toca o coração
O amor brota melhor e antes
– Chico Buarque
Entre palavras, melodias e ritmos, nossos dias são embalados por canções; estão em toda parte: no cinema, na televisão, nos Ipods e smartphones, no shopping, no supermercado e, claro, no bom e velho rádio, ainda ouvido por milhares em carros e casas tradicionais. São canções que, muitas vezes, constroem os laços sociais entre amigos, que movem grupos a irem a shows, teatros e bares. Por vezes, na memória daquele primeiro beijo, há uma canção a revivê-lo. Ao lembrar um ente querido, ressoam os versos da canção predileta que sempre o trará à mente. Seja na construção de nossas identidades, individuais ou sociais, seja no imaginário de uma época, sempre teremos canções. A “voz que vem da raiz”, de Milton Nascimento, já cantou antes: “Eu só sei que há momento/ Que se casa com canção. / De fazer tal casamento / Vive a minha profissão.”[2]
Na mediação para o público, o artista. São compositores, cantores, músicos, instrumentistas, letristas e diversos sujeitos que têm por profissão “Construir acordes e harmonias / Fazer música e poesia”.[3] Destaco que, em ambas, a profissão exaltada tanto por Toquinho como por Milton Nascimento não está referida ao amplo contexto da arte e da música, mas restringe-se à canção. Portanto, pelo menos para estes dois casos, é perceptível uma especificidade da canção como manifestação artística e que a voz, ou seja, o intérprete, e o(s) compositor(es) possuem um mester próprio. Este distingue-se da técnica composicional de um concerto ou sinfonia por apresentar a necessidade de dominar música e poesia; de saber reconhecer os momentos para a canção e, com afiada percepção da realidade, fazer o casamento entre obra e sociedade; e, por fim, a voz, o principal meio pelo qual a canção se manifesta.
Mas por que a canção possui um papel tão importante em nossas vidas? Por que de todas as formas musicais é a que está mais presente? Como relacionamos nossa musicalidade e expressividade poética na canção?
Como já foi dito, não se trata somente do caráter musical – melodia, ritmo, instrumentos – como também não é somente o texto poético por si só. Ao mesclar estes dois elementos, a canção estabelece uma forma de comunicação e discurso específica. Alguns poemas já resultaram em boas canções, como Canteiros, adaptação de Fagner ao poema Marcha, de Cecília Meireles. Assim como músicas instrumentais já ganharam letra posteriormente, ou uma mesma melodia que já recebeu mais de uma letra, como as canções Por causa de você, de Tom Jobim e Dolores Duran, e João e Maria, parceria entre Sivuca e Chico Buarque. Até mesmo Garota de Ipanema teve diversas versões de letra até chegar na “oficial”.
Mais do que um casamento entre letra e melodia, a canção se mostra como uma forma específica de expressão artística e está presente de forma diversificada em inúmeras culturas. Sabemos que as sociedades mais diversas possuíram e possuem canções tradicionais. Algo que já era conhecido e comparado por pensadores oitocentistas como Jean-Jacques Rousseau e Giambattista Vico, que viam no canto uma característica universal da humanidade.[4] Ressalto que não se trata da ideia de música como linguagem universal, mas o canto, a vocalização rítmica e melódica de um texto poético: a canção. Sob tal viés, a etnomusicologia (abordagem antropológica das músicas) analisou diversos contextos musicais em que as canções representam ordenações sociais, marcam acontecimentos da comunidade e a própria experiência social.[5]
Logo, temos que a canção não é o produto singular de uma sociedade específica, mas adquire valor e papéis distintos a partir das configurações sociais das quais é produto e produtora de significados. Das cantigas d’amor trovadorescas aos madrigais; das baladas oitocentistas à MPB, milhares de canções embalaram amantes, criaram discórdias, justificaram ideologias e fundamentaram resistências.
A canção não só apresenta uma historicidade como também uma linhagem própria dentro das manifestações artísticas. Os compositores de canção reconhecem esse laço de seu ofício e buscam sua filiação com seus antepassados, como mostra a canção Choro Bandido[6], parceria de Edu Lobo e Chico Buarque:
Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa, são bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas e os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim: você nasceu para mim, você nasceu para mim
Ou ainda, a forte inspiração do amor cortês trovadoresco que influenciou a Bossa Nova, expresso em Canção do Amor demais[7], de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
Quero chorar porque te amei demais
Quero morrer porque me deste a vida
Oh meu amor, será que nunca hei de ter paz
Será que tudo que há em mim
Só quer sentir saudade
Logo, vemos que a canção não é uma criação do presente ou tampouco criações isoladas no tempo. A canção possui uma identidade enquanto manifestação artística ao longo do tempo e que, mesmo apresentando funções e estilos distintos, a forma do verso cantado é presença nas sociedades de hoje e do passado.
Mesmo durante o delicado momento desta pandemia, os operários da canção não abriram mão de levar com diligência sua arte por meio de lives e gravações. Mônica Salmaso, cantora de rara voz, destacou-se com o projeto “Ô de casas”, no qual contou com a participação de diversos artistas renomados construindo arranjos próprios para a ocasião. O projeto já chegou a quase cem vídeos e deu visibilidade recorde à artista. Por sua vez, a cantora Teresa Cristina vem apresentando lives diárias desde o início da pandemia com um vasto repertório de canções que vai desde o samba, sua especialidade, ao repertório internacional. Nelas, também estiveram presentes os grandes nomes da MPB, que integraram a estrutura descontraída das lives que, muitas vezes, chegaram a atravessar a madrugada. Em decorrência deste projeto, Teresa Cristina teve, pela primeira vez, um contrato com patrocinador e estampou as capas da Revista Vogue na edição de Julho/Agosto.
Artistas do mainstream não deixaram de se fazer presentes nas redes sociais e atingiram multidões com lives atingindo cerca de oitenta milhões de views. Marília Mendonça, Bruno e Marrone, Jorge e Matheus, Sandy & Júnior e Wesley Safadão lideraram o pódio das mais assistidas e promoveram ações solidárias por meio de seus shows com doações de alimentos e quantias financeiras.[8]
Esses exemplos são apenas alguns que mostram como a canção está fortemente presente em nossas vidas e, mesmo sob difíceis condições, não abrimos mão delas. Caetano Veloso afirma na canção Língua: “Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção / Está provado que só é possível filosofar em alemão”. Somos uma humanidade cheia de ideias incríveis e as canções são o lócus dessa resistência e um caminho de esperança.
1] Professor de música do Colégio Único Educacional.
[2] Canções e momentos. Milton Nascimento. Disponível em http://m.letra.mus.br/milton-nascimento/808216/. Acesso em 2/08/2020.
[3] Minha profissão. Toquinho. Disponível em http://m.letra.mus.br/toquinho/87293/. Acesso em 2/08/2020.
[4] Cf. TOMLINSON, G. Musicology, Anthropology, History. In: Il Saggiatore Musicale, vol. 8, no. 1, 2001, p. 24.
[5] A título de exemplo e para uma introdução ao campo da etnomusicologia, ver: MERRIAM, A. The Anthropology of music. Northwetern University Press, 1964; BLACKING, J. How musical is man? Seatle/London: University of Whashington Press, 1974; SEEGER, A. [1987] Por que cantam os Kisêdjê São Paulo: Cosac Naify, 2015.
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