A política, envolvendo práticas e ações inerentes ao ser humano, sempre ocupou um papel de destaque na longa evolução das sociedades, constituindo-se, nessa medida, em uma das muitas necessidades básicas do homem, e o modo de produção é um dos fatores determinantes do modelo político adotado, pois estabelece as relações entre as organizações e entre os indivíduos.
Essa relação de cada elemento na estruturação das composições sociais e políticas e, por conseguinte, de poder entre os membros da sociedade, explica o aparecimento do Estado – uma criação do homem e a instância maior do poder dentro da própria sociedade – para fazer o papel de regulador das relações globais, dentro de uma determinada sociedade e, nessa medida, ganha destaque a ética. Como ciência da moral, é a ética o grande eixo em torno do qual se constrói todo o aparato jurídico e legal, norteador das relações políticas e de poder entre os homens.
No decurso da longa evolução da sociedade humana, as várias formações econômicas, sociais e políticas fizeram da ética os usos mais variados. Nas antigas civilizações orientais e mesmo no mundo mediterrâneo, no período que precede a formação da polis participativa e cidadã, a ética apresentava um forte caráter religioso: leis, direito, família ou clã e governos imbricavam-se com a religião, devidamente institucionalizada. A Antiguidade clássica grega consagrou a ética humanista a partir de um princípio fundamental: somente o homem pode determinar, segundo sua consciência moral, o que deve e o que não deve fazer. Assim, o homem somente poderia se realizar e alcançar a felicidade vivendo em solidariedade e participando de maneira ativa das decisões de interesse de todos os cidadãos, de cujo conjunto emanava a própria cidade-Estado.
Alternando-se com momentos em que predominou a ética autoritária – e aqui se inclui a religiosa ditada pela Igreja medieval –, a ética humanista ganhou espaço na Renascença e, posteriormente, no século XVIII, sob a ótica do espírito iluminista, que representa o estopim para consagrar por definitivo os direitos e garantias individuais, fundadas no direito natural do homem.
A ética autoritária que, curiosamente, na época do Renascimento, definiu-se como um elemento disciplinador do impulsivo individualismo humanista – e aqui é bom lembrar o pensamento ético e político de Maquiavel – negou ao homem a capacidade de saber o que é bom ou mau, pois a determinação de normas e preceitos é competência de uma autoridade superior, sempre acima dos indivíduos. A partir daí a ética autoritária se impõe como a “outra” tendência que marca a História da Época Moderna até hoje: baseada não na razão e no conhecimento, mas no temor à autoridade e na sensação de fraqueza por parte dos indivíduos subordinados. Tome-se como exemplo, a ética calvinista que marcou a formação das colônias inglesas no litoral atlântico dos Estados Unidos, tal que as autoridades religiosas e políticas, embora teoricamente estivessem separadas, na prática se confundiam, dando origem a uma verdadeira teocracia. Ou ainda, o pensamento ético-político que marcou o autoritarismo napoleônico – guarda fiel das conquistas libertárias burguesas advindas da Revolução Francesa –, segundo o qual “é a força que separa a massa do poder”. O extremo, por fim, pode ser encontrado na Alemanha Nazista, em que o bem e o mal eram estabelecidos em relação às propostas de um ditador, hábil manipulador da emoção e do misticismo das massas, por meio de uma eficaz propaganda eivada de justificativas e explicações racistas.
No âmbito da ética autoritária, a virtude essencial é a obediência irrestrita. O pecado imperdoável, por sua vez, é a rebeldia, vista como objeção ao poder de uma autoridade constituída sob um Estado de exceção ou de fato, violento e opressor que domina e explora todos os setores subordinados.
No caso do Brasil, desde os seus primórdios, tem-se transitado entre os dois sistemas éticos. A ética autoritária, marca da organização política e social portuguesa que predominou durante todo o processo de colonização, estendeu-se pelo século XIX e parte do século XX. O escravismo, o patriarcado, o patrimonialismo e o caráter elitista da sociedade nacional, heranças diretas da velha Metrópole, marcaram indelevelmente a época da monarquia, quando, então, consolidou-se o Estado Nacional.
As primeiras décadas do século XX, já sob a República Oligárquica, quando então se instituiu uma autêntica “República de Coronéis”, reproduzem – à exceção da escravidão – a velha ordem autoritária, cuja gênese encontramos no mundo colonial.
Durante a Era Vargas, já sob a égide de uma nova realidade marcada pela crise do sistema agrário-exportador e pela falência do esquema oligárquico, em que predominavam os interesses de uma minoria, e especialmente entre 1937 e 1945, quando se instaurou a ditadura do Estado Novo, a ética autoritária reveste-se de um outro caráter sob o discurso de um novo tipo de Estado, voltado para o Bem-Estar Social. O dito “bem-estar social”, nos moldes fascistas, sufocou as oposições pela violência de um forte aparelho repressivo policial e atrelou ao Estado as aspirações dos setores subalternos. E tudo em nome do nacionalismo e do desenvolvimento econômicos.
Entremeada pelos anos da democracia populista que se iniciou em 1945, a ética autoritária renasceria com todo vigor a partir de 1964, quando do advento do regime de exceção no qual pontificaram os governantes militares do chamado “ciclo revolucionário”; desta feita, a influência da Guerra Fria e a eterna vigilância contra o “perigo comunista” justificaram a violência e as atrocidades que se cometeram em nome da Segurança Nacional. O Estado forte e indevassável, típico da ditadura, acobertaria desmandos e práticas altamente prejudiciais à “coisa pública”, que sem a contrapartida da punição estimularam, no imaginário do homem comum, uma ética ainda mais perigosa e comprometedora, com suas origens no passado político em que imperavam os velhos coronéis, marcado pelo fisiologismo e pelo nepotismo. Era a ética da exacerbação do individualismo – não nos moldes da ética humanista – e sim, daquilo que se tornaria célebre sob a malfadada “Lei do Gérson”, ou simplesmente, a de “levar vantagem em tudo”. Nessa medida, a relação Estado, instituições políticas ou políticos e a sociedade de uma forma geral deveria se revestir do descrédito e da falseabilidade.
Nesse passo, a Era Collor e de seus sucedâneos passaram a exemplificar o estado de apatia e de alienação que caracteriza a sociedade civil como um todo. E isso apesar do “cruzadismo” das campanhas pontuais, desfechadas pelos grandes veículos de comunicação, em defesa da “ética e da moralidade na política”, geradora entre outros, do vazio, ingênuo e esdrúxulo movimento dos “caras-pintadas” que marcaram os anos noventa.
Sem ter ainda conseguido um apreciável grau de mobilização, amplos setores da sociedade civil, os subordinados em relação aos controladores da vida política, tolhidos também pela desinformação e, em alguns casos, até pela ignorância, buscam válvulas de escape e acabam entrando por caminhos tortuosos, como a opção pelas vias de ascensão individual a qualquer preço, o misticismo de segunda categoria e outros.
Chega-se, a partir de toda essa alternância entre a ética humanista e a autoritária, a um descrédito por parte dos indivíduos frente ao mundo político. Vive-se em uma era de liberdade que só pode ser comemorada por pessoas insensatas e alienadas, visto que nossa ética humanista acaba por tornar-se uma ética autoritária, não por ditar normas de conduta, mas sim por ceifar nossas oportunidades. Os indivíduos da era moderna são castrados e manipulados pelo sistema político, egoísta e interesseiro.
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