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HISTÓRIA E LITERATURA: DISCUSSÕES


HISTÓRIA E LITERATURA: DISCUSSÕES

Dissertação Expositiva Por Anderson Matias Bard 20/08/2020

Usar a literatura como elemento de pesquisa no campo da História tem aberto uma temporada de discussões que já passa de um quartel de século. Como podemos abordar o passado real, aquele que realmente ocorreu? Afinal, existe um passado verdadeiro? Como chegar até ele, através da História e, também, através da ficção? O que é História, o que é ficção, e de que é constituído uma personagem de ficção?

Este ensaio pretende apresentar, a partir de Pesavento, em seu livro História & História Cultural, uma breve relação das discussões que aquecem o mundo acadêmico, e em particular, a historiografia e a Nova História Cultural e uma análise conceitual de ficção e a personagem.

A autora, Sandra Jatahy Pesavento, afirma que, a partir da consciência de crise paradigmática nos anos setenta (século passado), foi necessária a busca de novos pressupostos teóricos, como a análise multifacetária de Michel Foucault, para quem a construção do discurso é o verdadeiro ponto de discussão, pois, para o filósofo francês, o discurso fundamenta e constrói o real. Outro autor abordado por Pesavento, Paul Veyne, afirmava que a História não poderia ser denominada de total e/ou verdadeira, mas as subjetividades dariam as explicações plausíveis. E mais, Veyne distinguia a História como disciplina literária. As discussões ganham força com Hayden White, que coloca a História no campo das representações de realidade, e não como o retrato da realidade, ou seja, apresenta a História como uma forma de ficção, ou a tradução do fato em ficção.

“… de um modo geral houve uma relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que elas manifestadamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura…” (White, 2001. p.98).

Paul Ricouer, em Tempo e narrativa, redimensiona a discussão afirmando que “o texto do historiador tem, pois, uma pretensão à verdade e refere-se a um passado real, mas toda estratégia narrativa (…) envolve representação e reconstrução” (Pesavento, 2004. p.36).

Para Pesavento as relações da História e a Literatura estão no campo de atuação da História Cultural apresentando aproximações e distanciamentos. Ambas são refigurações de um tempo, são formas de explicar o passado, imaginar o futuro. Ambas se valem de estratégias de retóricas, construindo em discurso a fala que pretendem expressar.

Mas além das aproximações podemos visualizar distanciamentos. O debate, que discute o próprio estatuto da História, entre verdade e ficção, concluiu que a História é uma ficção controlada pelo método ou pelas fontes, ou “A História é controlada pela relação que estabelece com seu objeto (…)” (Pesavento, p.82). E o objeto em questão, a literatura, deve ter um lugar bem definido, fonte de pesquisa. Ela representa o real, e ela também apresenta as sensibilidades de uma época, o lícito e o proibido, permitindo a verossimilhança, pondo em discussão os efeitos de real e de verdade que uma narrativa histórica pode produzir

Portanto, a ficção invade a realidade, e elementos de realidade são tomados de ficção. A finalidade desta operação de reconstruções do real e da ficção é dar uma “aparência de real”. Às vezes, porém, as imposições das personagens constroem um enredo que busca em vários elementos, ou vários fatos, “rudimentos de realidade” para compor um novo. Isso vemos bem quando analisamos o tempo da ficção.

Seria simples se não levássemos em conta o fato de se tratar do uso de um romance, de uma obra de ficção como fonte de pesquisa histórica. Na ficção, o real como algo dado desaparece, não possui função alguma. O que temos é sim uma “aparência da realidade que revela a intenção ficcional (…). Graças ao rigor dos detalhes, à veracidade de dados insignificantes (…), a causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário”. (ROSENFELD, 1998. p. 20/1).

Ficção:

O tipo de literatura que se ocupa da narração de acontecimentos imaginários e da representação de personagens imaginários; composição imaginária. Na actualidade e habitualmente: o conjunto de obras em prosa, constituído por romances e contos; a produção de obras deste tipo (SEGRE, 1989, p. 42).                       

A definição acima destaca a ficção como um processo de imaginação. Este processo aborda um conjunto de acontecimentos, ou ações (REUTER, 1996, p. 47) e personagens que se enquadram numa perfeita composição imaginária. Esta definição em inglês foi retirada do latim fictio originando a expressão texto narrativo.

O termo ficção, porém, vai além de um puro processo imaginativo, a prova está na mesma palavra latina usada acima, fictio, que deu origem às portuguesas ficção e fingimento. Assim ficção e fingimento nascem do mesmo ventre e explicam a possibilidade de uso na construção de uma história do artifício da mentira (SEGRE, 1989, p. 42). Aquilo que é narrado como verdade é, acima de tudo, uma construção do narrador, uma apropriação da “verdade” ou realidade modelada especialmente para a elaboração da narrativa ficcional.

A verdade que a literatura, especialmente a narrativa, institui é um simulacro de realidade: “mesmo se os factos que expõe não tem real consistência, não deixam de ser eles, porém, isomorfos de factos ocorridos ou possíveis: do mesmo modo que evoca personagens, ainda que não históricas, semelhantes todavia, às pessoas que se movem no palco da vida” (idem, idem).

A partir de uma coexistência entre ficção, fingimento e mentiras, podemos observar que estes elementos se confundem na narrativa. Eles necessitam de, no processo construtivo do texto, buscar elementos num campo “alheio” a tudo isso, a realidade. Para a sua construção, a ficção vai buscar no mundo real modelos para a elaboração do corpo narrativo: A intriga e as ações, as personagens, o espaço e o tempo. Para definir “modelo” recorreremos ao já citado Cesare Segre:

Os vários tipos de ficção são inventariáveis a partir dos tipos de papel assumíveis por um ‘modelo’: modelo que pode descrever a vida humana, pode interpretá-la com intencionais deformações e exageros, pode apresentar, para ela, uma alternativa fantástica, ou propor uma reorganização substitutiva (a utopia). Modelo que pode sorrir da vida ou fornecer-lhe chaves críticas, que pode favorecer uma evasão ou colorar uma esperança. A ambivalência entre liberdade fantástica e abandono inventivo, por uma lado, e empenhamento cognoscitivo e didáctico, por outro, corresponde, portanto, à diferente utilização que se pode fazer do ‘modelo’: apagar-se da sua contemplação ou reportá-lo, em atitude comparativa, à realidade que ele reproduz ficticiamente e/ou antecipa exemplarmente (idem, p. 46).

Na realidade, os “mundos ficcionais” construídos buscam elementos, ações e personagens, e se alimentam, como diz Umberto Eco, do “nosso mundo” produzindo um outro menor, o ficcional.

No mundo ficcional aceitamos duas regras: o fingimento e a mentira como verdade. O fingimento é a porta de entrada ao romance, e, o usamos como aceitação ao jogo proposto pelo narrador, fingimos aceitar as “verdades” que ele propõe e com imaginação fazemos nossa parte. Como afirma Umberto Eco “todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho…” (ECO, 1997, p. 9).

O fingimento obedece a uma série de postulados em que a escrita do romancista e a leitura acordam uma tese:

A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de ‘suspensão da descrença’. O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu (ECO, 1997, p. 81).

Assim, segundo o semiólogo italiano, não há mentiras na ficção, mas uma fingida verdade pronunciada no texto, e um acordo aceito. Na ficção, através deste acordo, o fingimento do leitor e do autor lança verdade sobre a ficção. E a verdade na ficção, muito mais do que na realidade, é indispensável para a credibilidade do texto.

A Personagem de ficção 

Nenhuma história de ficção “vive” sem uma personagem. A personagem é aquela que vivencia o enredo, ela dá sentido à trama, e experimenta as ações. Numa sincronia, o enredo só é possível através das personagens, e estas somente respiram dentro do enredo. Por isso “toda história é história das personagens” (REUTER, 1996, p. 54).

A personagem é uma criação, mas para “ser” a personagem precisa apresentar uma transparência, uma impressão ou “aparência de realidade”; “que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; que a leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor” (CANDIDO, 1998, p. 54). 

Para esta aceitação do leitor ocorrer, se faz necessário aceitar as verdades que ele, o autor, propõe: A verdade da personagem; ou melhor “a impressão da mais lídima verdade existencial” (idem, p. 55).  

Agora que temos o objetivo do escritor, qual seja, convencer seu leitor da verdade de sua personagem, precisamos perceber como ele dá a ela atributos de “verdade”. A personagem do romancista, assim, é o resultado de uma “configuração esquemática” (ROSENFELD, 1998, p. 33), tanto física quanto psíquica. A consequência é um sujeito, a personagem, totalmente determinado, ou, um ser puramente intencional. Outra questão: O homem “real” possui uma verdade fragmentária, portanto incompleta, e esta é imanente à experiência humana. A personagem por sua vez, também possui a realidade fragmentária, porém no romance ela é criada pelo autor. É o autor que demarca numa geografia, ou numa “configuração esquemática”, a possibilidade de conhecimento do outro (a personagem).

Nesse processo de criação, configuração e conhecimento da verdade da personagem, se faz necessária uma coerência interna (CANDIDO, 1998, p. 74), pois, como afirma Antonio Candido, “(…) a verdade da personagem(…) é mais um problema de organização interna que de equivalência à realidade exterior” (idem, p. 75).

É na organização da personagem, e, consequentemente, do enredo, que ela é definida. O autor irá selecionar aspectos que realcem um caráter mais nítido e perceptível do que aquele que observamos no “mundo real”. A personagem, assim, vive para o leitor “o imenso reino do possível” (ROSENFELD, 1998, p. 48). Para Candido, aparece aí uma das funções capitais da ficção, que é conhecermos de modo mais completo e coerente a personagem (de ficção), ao contrário do saber pobre e fracionário que temos dos seres (do mundo real) (CANDIDO, 1998, p. 64). 

Para conhecermos completamente a personagem, ela deve dar a impressão de que está viva, de que é um “ser” ela uma ficção. Deve, portanto, estabelecer relações, construir convivências, sofrer atrozes, e receber impactos positivos ou negativos. Para isso ocorrer, o autor pode tomar um modelo na realidade. Mas a personagem nunca poderá corresponder a pessoas vivas, mas sim, sempre nascer delas.

As personagens apresentam-se mais nítidas e transparentes a partir do longo período que vai do final da Idade Média ao começo do século XX. Neste período, afirma Reuter:

As personagens diversificam-se socialmente e desenvolvem-se através da textualização de traços físicos variados e de uma espessura psicológica à qual se acrescenta a possibilidade de transformar-se entre o começo e o final do romance. Mais realistas, não cumprem apenas destinos heróicos mas vivem, às vezes, existências miseráveis. O narrador designa de modo menos maniqueísta os bons e os maus (REUTER, 1996, p. 24).

No século XIX, os realistas buscaram preencher com pormenores significativos a personagem. Eles deram a ela uma consciência existencial. À personagem foi dado cada vez mais o exercício do monólogo interior, onde os mais íntimos pensamentos se revelam sugerindo um fluxo inesgotável de consciência (CANDIDO, 1998, p. 79).

Uma última, mas não menos importante, característica da personagem é ser ela um suporte de investimento do leitor.  Os suportes podem ser de ordem sociocultural e de ordem afetiva. Os de ordem sociocultural apresentam uma personagem “marcada”. Esta marca, um estigma, socialmente digitado, pode receber valor tanto positivo quanto negativo. 

Para concluir:

Estas linhas se pretendem suportes de uma maior análise onde outros conceitos poderão ser relacionados. Ficam a definição de ficção e personagem para uma melhor compreensão do objeto a ser trabalhado, a literatura. Onde o historiador possa percorrer sem medo as sensibilidades de um outro tempo.

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