Dar nome a um território é parte inexorável do processo de criação de sua identidade. A partir dessa constatação, observamos um fenômeno curioso que se desenrola no caso específico do continente americano, pois os mais diversos termos criados para designá-lo nos indicam quão árdua foi, e ainda é, a sua definição identitária. Mais do que isso, os vários nomes adotados desde a chegada de Colombo em 1492 – como por exemplo Índias, Novo Mundo, América, Indoamérica, Iberoamérica, Hispanoamérica -, nos mostram que a adoção de um em detrimento do outro é sempre resultado de um jogo de forças travado por diversos atores que compõem a rica diversidade sociocultural existente na região, ou então o resultado da visão que “o outro”, o estrangeiro, constrói sobre a mesma.
O termo América Latina não foge à regra, e seu aparecimento é esclarecedor de um determinado momento vivenciado pelos povos da América de língua espanhola, em meados do século XIX, quando estes se encontravam pressionados pelas ambições imperialistas de norte-americanos e franceses. Por mais que, na prática, trata-se de um termo impreciso que especifica uma área complexa, difícil de ser definida em termos geográficos e culturais, ele se mantém forte até os dias de hoje, a ponto de ser possível afirmar categoricamente que, do ponto de vista geopolítico e até mesmo cultural, existe uma região reconhecida mundialmente como sendo a América Latina.
Para buscarmos suas origens, devemos voltar nossa atenção ao conturbado período situado entre fins da segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, momento em que o continente americano passou por profundas transformações políticas e identitárias que foram determinantes no processo de criação de suas nações após séculos de dominação colonial europeia.
No caso da América hispânica, o que se observa nesse período foi, antes mesmo da criação de identidades nacionais, a gestação de uma identidade continental com a qual se poderia confrontar diretamente as antigas metrópoles. Desse modo, as elites coloniais, que até então valorizavam termos identitários como “criollos”, ou “espanhóis das Índias”, deixaram de lado seus discursos de igualdade política para com os peninsulares e passaram a se autodenominarem “americanos”, numa clara demonstração de união em nome da defesa contra possíveis ataques das antigas metrópoles europeias.
Conquistadas as independências, nas décadas seguintes iniciou-se um tortuoso caminho de construção das futuras nações das Américas Central e do Sul, e ao mesmo tempo, suas lideranças políticas passaram a adotar uma nova terminologia ao se referirem a esta nova região liberta, que seria Hispanoamérica. Para alguns historiadores, tal mudança seria não só o reflexo de uma consciência maior dos laços culturais existentes entre essas diversas nações, mas também objetivava reforçar uma nova identidade perante um novo inimigo não mais tão distante quanto as antigas metrópoles europeias, e que desde os anos 1820 despontava como uma potência regional: os Estados Unidos.
A partir da criação da Doutrina Monroe em 1823, com seu lema “a América para os americanos”, as ambições imperialistas norte-americanas em relação aos países do continente ficaram claras. Sendo inicialmente apenas uma advertência às potências européias no sentido de que não tentassem reativar o domínio colonial sobre a região, esta doutrina passou a ser utilizada ainda no século XIX como justificativa intervencionista, e pode ser exemplificada com a guerra travada entre os EUA e México em fins dos anos 1840, além da façanha de William Walker (1824-1860), norte-americano que a partir de 1855 passou a ser o líder político da Nicarágua.
Fato é que, perante o imperialismo dos EUA, novos termos que designassem a América hispânica surgiram, para além de Hispanoamérica. Foi nesse contexto que políticos e intelectuais americanos de origem espanhola residentes na Europa (principalmente Madrid e Paris) passaram a incorporar uma ideia criada na França nos anos 1830, difundida sob a bandeira do movimento ideológico conhecido como panlatinismo.
De acordo com os criadores e defensores dessa ideologia francesa, como por exemplo Michel Chevalier (1806-1879) em sua obra “Lettres sur l’Amerique du Nord” (1836), haveria no continente americano “duas raças”, a latina e a saxônica:
Os dois troncos, latino e germânico, se reproduziram no Novo Mundo. América do Sul é, como a Europa meridional, católica e latina. A América do Norte pertence a uma população protestante e anglo-saxônica (…). A França (…) constitui o topo do grupo latino; é seu protetor. Nos acontecimentos que parecem se aproximar, o papel da França é grande. A França é depositária dos destinos de todas as nações do grupo latino nos dois continentes. Somente ela pode impedir que esta família inteira de povos não seja tragada pelo duplo avanço dos Germanos ou Saxões e dos Eslavos.
O que o panlatinismo defendia, portanto, era a criação de uma união “latina” intercontinental que teria a França como liderança.
Parecendo desprezarem o aspecto da liderança francesa, alguns hispanoamericanos residentes na Europa utilizaram essa dualidade existente entre uma América latina com “l” minúsculo (ou seja, com o termo “latina” servindo apenas como um adjetivo, e não um substantivo) e uma América saxônica, tal como proposto pelo panlatinismo, e a partir disso criaram o termo América Latina com “l” maiúsculo (agora sim com este último na posição de um substantivo), sendo que o termo “latino” fazia conotação somente à América de língua espanhola, excluindo assim os americanos de origem portuguesa e francesa de sua área de abrangência.
A autoria do termo em questão suscita ainda um caloroso debate entre os estudiosos do tema. Para o filósofo uruguaio Arturo Ardao, o nome América Latina foi criado pelo pensador e jornalista colombiano residente em Paris José Maria Torres Caicedo (1830-1889). Publicado em setembro de 1856 na capital francesa, Torres Caicedo lançou o poema “Las Dos Américas”, onde afirmava:
La raza de la América latina
Al frente tiene la sajona raza,
Enemiga mortal que ya amenaza
Su libertad destruir y su pendón
Já o historiador chileno Miguel Rojas Mix discorda do uruguaio ao afirmar que o termo não nasce com Torres Caicedo, mas sim com o seu conterrâneo Francisco Bilbao (1823-1865). Bilbao, intelectual que entre os anos de 1855 e 1857 residia em Paris, pregava também como alguns hispanoamericanos exilados na França uma união dos povos das repúblicas de origem espanhola, para fazer frente ao imperialismo ianque. Porém, segundo Rojas Mix, em junho de 1856 – ou seja, três meses antes de Torres Caicedo – o pensador chileno teria assim se referido a região durante uma conferência em Paris :
Pero la América vive, la América latina, sajona e indígena protesta,
y se encarga de representar la causa del hombre (…).
Rojas Mix acredita que muito provavelmente Torres Caicedo pode ter ouvido da própria boca de Bilbao este nome quando da realização da conferência em Paris, para posteriormente o utilizá-lo em sua obra. Mesmo não havendo nenhuma documentação que comprove a participação do colombiano no evento, para este encontro foram convidados os intelectuais hispanoamericanos residentes em Paris, e, como estes não eram numerosos à época e todos se conheciam bem, Rojas Mix acha difícil acreditar que Torres Caicedo não estivesse ali presente ou pelo menos não soubesse do que foi então discutido.
Independentemente das divergências acerca da autoria desse conceito, o certo é que se em um primeiro momento o seu uso se deu de maneira intensa, já em meados dos anos 1860 ele começa a ser desprezado, até mesmo pela própria elite hispanoamericana. Isto se deveu, em parte, pelo fato de que durante o governo francês de Napoleão III, no chamado Segundo Império (1852 – 1870), a França empreendeu uma agressiva política imperialista no continente americano, atingindo o seu ápice em 1862 com a invasão do México e a subsequente nomeação do arquiduque austríaco Maximiliano de Habsburgo como monarca daquele país.
Tendo o panlatinismo como sustentáculo ideológico, o imperialismo francês na região trouxe um descontentamento generalizado principalmente àqueles que até então interpretavam que essa união dos “povos latinos” se daria mais pelo viés cultural do que político. Subordinar-se a quem quer que seja, mesmo que fosse um “irmão” latino, era uma afronta ao desejo antigo das nações de se verem livres da interferência externa de suas políticas. Assim, o termo América Latina, por estar intrinsecamente ligado ao pano de fundo ideológico de uma política intervencionista da França no continente americano, caiu em desuso nas três últimas décadas do século XIX.
Porém, com o passar do tempo, ao invés de desaparecer por completo, o conceito sobreviveu aos percalços de seu destino, e voltou a se fortalecer após a Segunda Guerra Mundial, principalmente por meio da ação dos organismos políticos multilaterais. E, diferentemente da época em que foi criado, o termo passou a incluir o Brasil. Compreender as motivações dessa inclusão, contudo, é tarefa para outro texto…
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