UM CASO QUE ME CONTARAM SOBRE O “AMOR DEMAIS”.
Lembro-me de ter ouvido certa história uma vez: um amigo de um amigo meu havia pagado muito para ter acesso ao, então, mais novo e mais completo aplicativo de relacionamentos e encontrou alguém que o acompanharia até o fim de sua vida. Como estava solteiro há uns 5 anos e já havia falhado várias vezes em encontrar alguém, o sujeito decidiu que faria de tudo para estar casado aos 50 anos (ele já tinha 48).
Para efeito de conversa, vou chamar o homem de Carlos, já que só lembro que era alguma coisa com C. Podia ter sido Marcos. Enfim, Carlos tinha recebido uma notícia um tanto quanto sensacionalista de que um grupo de pesquisadores havia iniciado o projeto do que seria o aplicativo de relacionamentos perfeito. Coletando dados de todas as redes sociais e mapeando todas as atividades on-line do usuário, o programa “CasaFlex” (ou algum outro nome cafona) podia criar um perfil do que seria a pessoa perfeita pra ele. Restaria ao Carlos apenas uma única escolha no fim do processo: se desejaria um igual ou um oposto. Por fim, o CasaFlex pesquisaria no seu banco de dados e, como um cupido perfeito, juntaria os dois pombinhos.
Márcia. Era ela o perfeito oposto de Carlos. Ele achou que se cansaria de conviver com um exato ele diariamente e julgou a outra escolha narcisista. “Os opostos se atraem”, disse. No entanto, entre um toque na tela e a notificação do CasaFlex, passou-se quase um ano. Mais pela escassez de usuários (realmente desesperados, visto o preço de inscrição) do que pela demora para processar informações.
Fato é: assim que recebeu a mensagem de que o CasaFlex encontrara Márcia, Carlos foi correndo abrir o chat. Era o amor da sua vida! Em meia hora de bate papo, já falavam em casamento, adoção, viagens… E eles achavam aquilo um máximo! O “app” havia feito o cálculo perfeito para que os opostos se complementassem ao invés de subtraírem. Tudo o que era defeito de um, era a qualidade do outro – como se fossem uma geladeira com micro-ondas.
Queriam o melhor primeiro encontro da história e planejaram cada detalhe. Seria na semana seguinte, porque o quarteto de cordas estava com a agenda cheia até domingo. Eles já se amavam, já haviam aprendido a lidar com os defeitos do outro e já haviam resolvido as diferenças importantes. Certamente iriam estar juntos até o final de suas vidas.
Os dias passaram e o amor só aumentou, juntamente com a ansiedade. Não aguentavam mais esperar, mas já estava tudo combinado. Se seguraram por mais algumas horas. Pronto, seria no dia seguinte. Os dois se arrumaram, usaram os melhores perfumes, escolheram as melhores roupas. Se já estavam desesperados para conhecer uma alma gêmea, imagina como se sentiam ao poder, enfim, se encontrar pessoalmente.
Motores, pardais, multas. Velocidade e desespero. Essa foi a viagem de ambos. O problema foi que, devido ao horário, o cair da tarde, as ruas se enchiam de carros de várias pessoas querendo voltar pra casa. Carlos viu o engarrafamento e hesitou por alguns segundos. Estava prestes a descumprir uma lei e fazer uma idiotice. Ele não podia esperar muito tempo, então decidiu que ia pegar a contramão, já que o outro lado da pista estava vazio.
Ele veio correndo pra não perder tempo, não poderia se atrasar. Estava quase lá! A contravenção teria sido um sucesso!… se não fosse pelo outro carro que, antes coberto pela esquina, já vinha fazendo a curva e estava, também, muito acelerado. Não deu tempo. Os carros, que vinham em direções opostas, bateram de frente. Ambos estavam muito desesperados. De fato, se amaram até o fim da vida. De fato, os opostos se atraíram.
Diante dessas perdas verdadeiramente trágicas, não pude deixar de apontar uma ironia:
— E se tivessem escolhido um “igual”?
Um amigo comentou:
— Aí os dois teriam ido pela contramão, indo pelos lados opostos.
Talvez nunca se encontrassem, foi a conclusão.
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