Reportagem por Cecilia Araújo Carlos em 6 de Setembro de 2022
Publicado por Beatriz Pinheiro Martins
Cem segundos para o fim do mundo
Em 1947, uma comunidade de cientistas da Universidade de Chicago criou um dispositivo metafórico com objetivo de alertar a humanidade sobre a possibilidade de um fim próximo. O “Doomsday Clock” ou “Relógio do Juízo Final” é um símbolo da crise existencial do Homem e da própria capacidade de autodestruição, além de ser uma das campanhas científicas mais bem sucedidas de toda a História. Criado inicialmente em vista da ameaça iminente de uma guerra nuclear entre a União Soviética e os Estados Unidos, o relógio vem sendo atualizado anualmente, desde sua criação, podendo ganhar ou perder tempo perante uma análise geral do cenário mundial contemporâneo. Em 2020, o relógio estagnou na estaca mais próxima do apocalipse de toda a sua história. Os ponteiros indicaram que restavam apenas cem segundos para o fim do mundo. Essa posição, que não mudou desde então, reflete a instabilidade da situação global e a falha das instituições internacionais em reagir ao perigo óbvio e crescente a que o mundo está exposto. Além disso, o agravamento cumulativo e constante das questões ambientais, acompanhado da deterioração das relações entre Estados Unidos e Rússia, acrescidas dos efeitos da pandemia da covid-19, culminam em um contexto complexo e inconstante.
História e origem
Em 1939, uma carta enviada pelo cientista Albert Einstein e Leo Szilard resultou na criação do Projeto Manhattan, uma colaboração militar e científica que em alguns anos produziu um acervo de bombas atômicas, muito mais poderosas do que o esperado, capaz de destruir a civilização contemporânea. Envolvidos nos testes de produção da nova arma, os cientistas do projeto foram os primeiros a se preocuparem com a letalidade e as consequências que o uso desses dispositivos poderia gerar à humanidade. Nesse sentido, muitos dos participantes do empreendimento se organizaram para garantir um futuro seguro para a tecnologia nuclear, redigindo por exemplo, o Relatório Franck, que debatia e argumentava contra o ataque atômico em Hiroshima e Nagasaki, no Japão.
Posteriormente, o mesmo grupo fundou o “Boletim dos Cientistas Atômicos de Chicago”, que, apoiados por outros especialistas da comunidade científica e do direito internacional, criaram um movimento de dimensão global capaz de afetar nas tomadas de decisões quanto ao uso da tecnologia nuclear no mundo.
Em 1945, a artista Martyl Langsdorff, casada com um dos cientistas do grupo, foi convidada a confeccionar uma capa para o boletim, que agora adotaria o formato de revista, com o objetivo de aumentar a comunidade leitora. Nesse momento surge o primeiro “Doomsday Clock”.
Martyl, imersa no mundo de apreensão e medo do marido, compreendia os riscos a que a humanidade estava exposta. A escolha de um relógio como símbolo principal da capa não foi atoa. Ele representa uma tomada de consciência da passagem irreversível do tempo. Os ponteiros podem avançar como também podem retroceder, o momento é o presente, e é nele que a História se decide, baseada nas escolhas e ações dos cidadãos do mundo.
Em 1949, com o teste das primeiras armas nucleares soviéticas, o relógio deixou de ser uma metáfora estática e passou a ser dinâmico. O editor do boletim, procurando sinalizar a gravidade daquele acontecimento, moveu os ponteiros de sete para três minutos para meia noite e assim, ativou sem querer o relógio. Desde então, a ideia se difundiu e todos os anos o dispositivo é atualizado e um relatório é divulgado à população.
O relógio no século XXI
Atualmente, o relógio está mais adiantado do que se encontrava ao longo da crise dos mísseis cubanos em 1962, considerada o momento de maior tensão nuclear do século XX, marcando sete minutos para meia noite na época. O cenário contemporâneo é muito preocupante, e indica uma falta de unidade das lideranças mundiais frente aos desafios atuais.
Um dos fatores influentes na estaca de cem segundos do relógio é o agravamento da questão ambiental. Mais aguda nos últimos cinco anos, a crise climática é um enorme obstáculo, pois além das consequências propriamente ditas ambientais, como chuvas ácidas e mudanças no clima, que afetam diretamente a natureza, há também impactos sociais e econômicos, como uma possível crise da distribuição da água. Apesar da existência de inúmeros acordos sobre a questão, como o Acordo de Paris e as reuniões das Conferências das Partes (COP), eles são muito tardios e portanto pouco eficientes agora, além de haver uma clara falta de motivação dos estados em colaborar com a causa por questões econômicas. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, se as ações combativas da crise ambiental se limitarem às promessas atuais, a Terra ficará no mínimo 3ºC mais quente comparada aos níveis da pré-revolução industrial até 2100. A organização também confirmou que 2016 foi o ano que apresentou a maior taxa de CO2 atmosférico dos últimos 800 mil anos. Dados como esse são indicadores alarmantes do contexto ambiental atual que é de interesse da população mundial como um todo já que ela é responsável – em diferentes escalas- por essa situação.
Desde o fim da Guerra Fria em 1991, houveram poucos momentos em que as relações entre as duas grandes potências mundiais estiveram tão complexas. Este é outro agente responsável pela conjuntura atual. O quadro amistoso vem se desenvolvendo desde 2016, iniciando-se no governo do ex-presidente americano, Barack Obama, e culminando recentemente com a Guerra da Ucrânia. O perigo da situação reside no fato que os Estados Unidos e a Rússia computam juntas 90% de todas as armas nucleares existentes no globo. Segundo o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o conflito na Ucrânia elevou as tensões geopolíticas a níveis não vistos desde a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, e que a humanidade pode estar a cometer “um erro de cálculo da aniquilação nuclear”. O poderio nuclear tem sido bastante evocado nos últimos meses, tanto pelo Kremlin, caso haja “ameaça existencial contra o país”, como pelos membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e Ucrânia.
A pandemia da Covid-19 teve inúmeros efeitos na dinâmica mundial, afetando todas as esferas da sociedade. O aumento das desigualdades sociais, exclusão e discriminação contam como algumas dessas consequências. Segundo o relatório “O Estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2021”, mais de 2,3 bilhões de pessoas, o equivalente a 30% da população mundial, não tinham acesso a uma alimentação adequada durante o ano de 2020. No Brasil, o desemprego entre jovens de 18 a 24 anos chegou a 27,1% durante o período mais intenso da pandemia, afetando de forma mais direta as mulheres negras e pardas, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Houve de maneira geral, uma queda da qualidade de vida daqueles que já eram vulneráveis antes da crise. Esse cenário resultou em um contexto violento, desigual e com certeza é um dos fatores que culmina o tique-taque cada vez mais apressado do Relógio do Juízo Final.
Ainda há esperança
No final do relatório do Doomsday Clock de 2020, os cientistas responsáveis por redigir o documento indicaram algumas ações que podem ser tomadas com o objetivo de reverter esta situação pré-apocalíptica. Na esfera do meio ambiente, uma iniciativa dos Estados Unidos, China e outros países altamente industrializados em acelerar o processo de descarbonização atrelado a uma política de compromissos ambientais e um redirecionamento do investimento do setor público como do privado para inovações e tecnologias sustentáveis. Na saúde pública, uma maior cooperação entre as lideranças mundiais e a Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras instituições internacionais com o objetivo de reduzir riscos biológicos através de um monitoramento mais eficaz das interações animal-humano, melhoria na vigilância e notificação internacional de doenças, entre outros. E no âmbito da segurança nuclear, os presidentes russos e americanos devem identificar limites para armas nucleares até o fim de 2022, ambos devem concordar em reduzir a dependência de armas nucleares.
O Relógio do Juízo Final é uma metáfora brilhante que assusta. Uma das melhores campanhas científicas que o mundo já criou, concentrando inúmeros fatores e questões em uma imagem simples de compreender. Ele mede a capacidade da humanidade em gerir seus problemas e crises e demonstra, a cada ano um pouco mais, que a sociedade vem falhando nesta tarefa. O futuro depende de todos e, se nada for feito a respeito, as badaladas da meia noite podem não estar muito distantes.
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