Sábado, solitário e pacato. Meu excesso de horas dormidas pela manhã me deixara acordado até tarde. Dificilmente sei o que fazer nesses momentos de solidão senão contemplar o próprio vazio ao olhar a imensidão da noite pela minha janela.
A lua parece brilhar em algum canto que eu não vejo, nuvens escuras silenciam as estrelas do céu. O amarelo das luzes dos postes transpassa a névoa e a enche de um vermelho alaranjado. Nenhuma alma conhecida ainda está acordada, talvez nem a minha própria.
Nesse céu amplo, profundo, quieto, vermelho, não há repouso nem conforto; só há o abismo. Apenas solidão, até que ouço uma voz. Uma voz feminina rouca e com tom de ironia cínica, sem nem cumprimentar, pergunta:
— Quem é você?
A voz preenche o vazio da hora como se o som fosse um fluido. Eu me estremeço, fico pálido como o luar de horas atrás.
— Que… Quem é v… você?
— Você tem medo de quem sou ou de quem posso ser?— ela, agora um vulto, imediatamente responde, vindo lentamente em minha direção.
— Acho que tenho medo de quem eu acho que você é — respondo, após alguns segundos paralisado.
— Então você que me responde: quem eu sou?
— Eu não sei. Talvez seja uma assombração.
— Se eu fosse uma assombração, você nem teria me perguntado; apenas fugiria ou invocaria algum nome.
— Como sabe que eu reconheceria uma assombração tão facilmente?
— Porque, do jeito que os humanos entendem, assombrações só existem para quem nelas acredita, e quem crê morre de vontade de provar que sua crença é a verdade. Em outras palavras: assombrações foram historicamente conclusões precipitadas.
De novo, o silêncio. Ainda um pouco assustado, mas mais curioso, ponho-me a pensar. Vejo a figura, ainda um vulto não tocado pelas luzes da rua ou pela mísera luz de luar. A única coisa que consigo dizer:
— Então o que você é?
— Eu sou quem te deixa só, sou quem te desespera, mas também sou quem te faz pensar.
— Você tem um nome?
— Muitos nomes já me foram dados, mas, honestamente, poucos são tão esquisitos quanto aquele pelo qual você me chama.
— Então eu já te conheço?
— Se fosse de fazer amizades, diria que somos amigos próximos, mas isso não importa. Nomes, rostos, formas… prefiro ser um vulto.
Se aparências não importam, imaginei que outras coisas deveriam importar:
— Pra que veio me visitar?
— Você que é a visita. Por que perturba o meu silêncio?
— Mas você foi quem falou, em primeiro lugar!
— Por favor, você não se calava por dentro desde que começou a me olhar. Preste atenção: quando as vozes externas se calam, a voz de dentro começa a falar. Para isso estou aqui, vim te fazer pensar. Por que não vai dormir em vez de me encarar?
Eu paro para pensar numa resposta.
— Não tenho sono e o céu é a minha única companhia.
— Você sabe que esse céu não é companhia; pelo contrário: é mais um espaço vazio em que não há ninguém para conversar. Você pode tentar se enganar o dia inteiro, mas eu nunca o deixarei mentir para si mesmo. Talvez seja por isso que não gostem muito de mim.
— Eu gosto de você.
— Nunca gostou, você odeia estar só, como qualquer outro. Quase ninguém gosta de estar verdadeiramente solitário. A maioria das pessoas que dizem gostar da solidão geralmente gostam do conforto que a bolha da própria personalidade traz quando comparada aos espinhos dos outros. Porém, quando você sabe que só há você (pelo menos, entre os que estão acordados), você passa a ser o seu outro e sua bolha é comprimida contra seus espinhos. Saiba que eu também não gosto de você. Você é o meu outro, também tem espinhos.
Sua voz áspera e tortuosa atingia meus ouvidos como um acorde dissonante. Sua sombra continuava a me encarar. Nada foi dito por algum tempo. O silêncio que calava as vozes externas parecia que começava a calar as internas também. Viro-me a ela:
— E você dizia que o silêncio externo estimulava a voz de dentro…
— Às 3 da manhã, até o silêncio é mais quieto. O pensamento vai ficando mais abstrato e se liquefaz em sentimentos, sensações e memórias. Quando você me vê, de quem você se lembra?
— De alguém que sempre quis ver nessas horas, mas nunca conheci.
— Você já sabe quem eu sou.
— E por que não gosta de como a chamo?
— A origem desse nome é algo como “a hora em que as coisas ficam boas” ou ainda, uma espécie de fim. Na verdade, é o nome que menos me cabe. Comigo, os problemas do homem florescem e os medos tomam forma. Além disso, não estou nem perto do fim, sou o começo de tudo. Irônico, não?
— Tão irônico quanto você.
O silêncio volta a reinar, pensamentos vão se derretendo ainda mais. O coração, essa mescla de um sentir e não sentir, não sabe se bate ou se pula uma batida. Volto-me à sombra.
Como se fosse feita de névoa, sumiu sem dar nenhum sinal. Dissipou-se no ar, talvez. Não havia nem rastro de que ela já havia algum dia estado ali.
O sol nascia.
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