Por Eduardo Fernandes / 03 de agosto de 2020 / Atualidades, Cultura & Arte
Dia desses aconteceu uma aula virtual, no Colégio Único, que se tornou um debate. O tema era “A Condição Humana”. A aula/debate foi desenvolvida pelos professores Gabriel (Filosofia), João Carlos “Covinha” (Filosofia) e Raul (Sociologia) e Carreira (História).
Após as argumentações dos três primeiros, em que foram apresentadas ideias de filósofos como Jean-Jacques Rousseau, Jean-Paul Sartre, Michel Foucault e Achille Mbembe, entre outros, o professor Carreira fez uma observação que foi para além daquele tema, daquela aula ou daquele debate: quase todos os autores abordados até aquele momento faziam parte de um mesmo viés ideológico, principalmente, os pensadores do séc. XX.
Nesse momento, ele questionou a ausência de pensadores, como, Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Roger Scruton, Thomas Sowell, entre outros.
Eu, que sou “das artes” e apenas um amante das Ciências Humanas, fiquei, como diz o ditado, “com a pulga atrás da orelha”.
Tornei-me, no debate, orgulhosamente, um aluno dos meus quatro colegas e me coloquei a pensar algumas coisas que compartilho aqui.
A crítica do professor Carreira me fez lembrar como nós, professores e professoras, alunos e alunas, estamos submetidos a um sistema que é determinado, em muitos aspectos, pelas provas de seleção (PAS/Vestibulares/ENEM).
Assim, as ideias, obras e autores que abordamos em sala dependem mais daquilo que, geralmente, é cobrado nessas provas que das nossas escolhas pessoais. Isso faz pensar na responsabilidade que esses exames têm acerca da construção ideológica de todo contexto educacional.
Daí, a pulga atrás da minha orelha começa a se mexer: Está correto uma prova decidir o que os(as) estudantes devem estudar? Uma prova tem o poder de impor que estudemos em todo o ensino médio autores de esquerda ou direita, conservadores ou progressistas, europeus ou africanos?
É lógico que uma prova é só um objeto, porém, ela é construída por várias pessoas que têm suas inclinações políticas e ideológicas.
Diante disso, a pulga se mexe de novo: Quais critérios orientam a escolha dos conteúdos que são avaliados nos obrigando, assim, a estudá-los? A elaboração das provas é feita pelas mesmas pessoas que definem os programas, os conteúdos e os conhecimentos que devem ser avaliados nos exames?
Por fim, com a pulga já frenética, fico pensando: será que todo o sistema educacional está errado, que todas as provas são meros instrumentos de manipulação e as bancas examinadoras são formadas por doutrinadores ideológicos????
Antes de achar que somos apenas essa massa de manobra ideológica das bancas das universidades, posso falar da experiência que tenho vivido participando do grupo de sistematização da matriz de avaliação do PAS/UnB desde 2004.
As obras (literárias, artísticas, científicas, etc) que compõem a matriz de avaliação do PAS, que inspiram boa parte dos nossos conteúdos, integram um subprograma que dura os três anos do Ensino Médio.
Todo ano, as obras de um dos subprogramas passam por uma revisão, ou seja, as obras mudam a cada três anos sequencialmente. Para que isso aconteça, vários setores da UnB se articulam para disponibilizar uma plataforma virtual em que toda a comunidade do Distrito Federal pode sugerir inclusões, exclusões e manutenções de obras nos objetos de conhecimento a serem avaliados pelo PAS.
Isso é uma forma de tentar promover uma integração entre famílias, estudantes, escolas e universidade, evitando o “encastelamento” que o ambiente acadêmico geralmente sofre.
Ao fim do prazo para as contribuições da comunidade, a plataforma é interrompida e todas as sugestões são compartilhadas com o grupo de sistematização e esse grupo analisa a viabilidade das sugestões para, assim, chegar ao conjunto de obras a serem inseridas naquele novo subprograma.
Na última revisão, as obras da 3ª etapa do subprograma 2018 (para estudantes que ingressaram no ensino médio em 2018) foram alteradas. O grupo responsável por essa revisão – que ainda está em curso – é formado por professores e professoras de escolas de ensino médio, públicas e privadas, e representantes da própria universidade.
Cada pessoa representa também a sua área de conhecimento. Portanto, é um grupo heterogêneo, com formas de pensar e se expressar diferentes, que representa diversas realidades (e que briga bastante, mas, por um bom motivo).
Para evitar qualquer tipo de fraude (ou de “manipulações ideológicas”) esse grupo não tem (e nem pode ter) qualquer acesso às bancas examinadoras. Se por um lado isso pode evitar fraude, por outro, cria-se o risco de surgir um hiato entre aquilo que está na matriz de avaliação e o que é cobrado nas provas do PAS, efetivamente.
É uma crítica conhecida na comunidade escolar a falta de alinhamento que costuma aparecer entre alguns itens das provas e os objetos de conhecimento da matriz de avaliação.
Mas, voltando à revisão das obras, posso afirmar que acessibilidade, adequação da linguagem para a série, ineditismo no programa, interdisciplinaridade, são critérios importantes para que uma obra seja inserida. Porém, sempre existem aspectos mais subjetivos nessa escolha.
Nesse ponto, ressalto a preocupação que o grupo de sistematização vem tendo ao inserir obras que promovam o que o professor Carreira apontou no debate: o respeito à diversidade de pensamentos no ambiente acadêmico.
Não acredito que o papel das universidades deve ser o de defender um único pensamento, mas, criar possibilidades dos(as) estudantes conhecerem pensamentos diversos, com vários vieses, para poderem fazer julgamentos dentro de uma perspectiva dialética.
Trata-se de possibilitar que todos e todas consigam defender posicionamentos de forma embasada, sem criar distorções históricas, omissões ou descontextualizações de fatos e ideias.
Corroborando esse pensamento, o grupo de sistematização inseriu nas obras da 3ª etapa, uma peça de teatro de um autor assumidamente conservador: Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues!! O conservador mais subversivo do teatro brasileiro.
O conservador que escandalizou plateias nas décadas de 1940 e 1950, sofrendo com a censura de peças, como, Álbum de Família, Senhora dos Afogados, Anjo Negro, entre outros textos. As censuras ocorriam devido à imoralidade, violência e morbidade de seus textos.
Um dos pedidos de censura contra Perdoa-me por me traíres, por exemplo, partiu da Liga das Senhoras Católicas de SP, em 1958. Aí, a pulga atrás da minha orelha fica louca! Como assim: o conservador foi censurado pelos conservadores?
Por essas e outras, Nelson instiga a gente pensar sobre o que é o conservadorismo. Como ele, considerado um pervertido por setores conservadores da sociedade, autodenominava-se conservador? Como ele, que não acreditava que existisse tortura no Brasil e era um defensor da ditadura militar, teve um filho preso e torturado pelos militares?
Estudar sobre Nelson Rodrigues e sua obra nos instiga a pensar comportamentos, afirmações, imposições de grupos de espectros ideológicos opostos. Obriga a gente a sair do simples “sim e não”, “gosto ou não gosto”.
Levando a discussão para outras questões, quando encontramos em um de seus contos a sentença A mulher “batata” é a que sabe ser traída!, já definimos ele como um machista? Ele afirmava ou criticava essa ideia? Seria uma provocação? Homens e mulheres da nossa sociedade ainda pensam assim? Podemos criticar o autor e elogiar sua obra? Ele inventou essa frase ou está reproduzindo algo que é corriqueiro? Que tipo de sociedade inventa uma afirmação como essa?
Se a obra nos causa essas indagações, ela já está cumprindo seu papel como obra de arte e como assunto a ser estudado na escola, justamente por não nos colocar em um único lado da discussão, mas, por instigar o debate.
Mas, 3ª etapa traz também o alemão Bertolt Brecht. Poeta, dramaturgo, teatrólogo, encenador, o grande renovador do teatro do século XX e, assumidamente… marxista!
Hannah Arendt, pensadora que também está na 3ª etapa e também faz provocações sobre os conceitos mais generalistas da filosofia política, criticou Brecht afirmando que ele “deixou de ser poeta” sofrendo “a repentina perda daquilo que, ao longo da história humana, tem figurado como um dom divino” quando ele voltou para Berlim e viu como o povo vivia em um regime comunista que ele defendia.
Outros autores apontam a ambiguidade de Brecht em relação ao Stalinismo, pois, ele não criticava, como exigiam alguns intelectuais da época, nem apoiava como queriam outros. Foi perseguido na Alemanha pelo nazismo e nos Estados Unidos pelo Macartismo, sendo o primeiro artista estrangeiro a ter de sair do país, devido às suas questões ideológicas.
Se estudar o Nelson Rodrigues nos leva a discutir o que de fato é ser um conservador, o estudo sobre Brecht exige que compreendamos também o que é o pensamento marxista e seus reflexos na arte e na política.
Aqui também vale pensar sobre o criador e a obra. Agora com a pulga atrás da orelha esquerda, penso: mesmo sem concordar com o marxismo brechtiano, podemos pensar a desigualdade social questionada na obra dele?
Existem indivíduos que usam de sua posição social para explorar outros indivíduos, como na engraçada peça Um Homem é Um Homem?
Será que a posição social ou o poder político de um indivíduo pode influenciar as decisões de um juiz, como acontece em A Exceção e a Regra? Será que toda sociedade ou grupo precisa de um herói para se inspirar, como é questionado em Galileu, Galilei?
Até onde as questões culturais e sociais limitam a nossa liberdade, assunto discutido em A Alma Boa de Setsuan?
Brecht não é uma unanimidade em relação aos seus posicionamentos políticos, principalmente no momento de polarização ideológica que vivemos, mas é difícil negar sua qualidade artística.
Voltando a Hannah Arendt, sua crítica é sobre seu posicionamento político em seus últimos anos de vida, mas, não sobre a qualidade dos seus textos. Ela admitiu que ao menos um dos últimos poemas – “Canção de um apaixonado” – é “um produto perfeito”.
E reconheceu que em outros poemas desse período final podem ser encontrados alguns “versos tocantes”. Peças, como, Galileu, Galilei, A Alma Boa de Setsuan, A Ópera de Três Vinténs, Luz nas Trevas ou poemas, como, O Analfabeto Político, Se os Tubarões Fossem Homens ou Aos Que Vierem Depois de Nós, não foram criados para impor visões, mas repensar, reafirmar ou renegar ideias nossas.
O conservador Nelson ou o marxista Brecht não são estudados para acharmos que eles estão corretos no que disseram. É para encontrarmos suas falhas, suas contradições e, nesse exercício, talvez encontremos as falhas e contradições do nosso tempo e de nós mesmos.
No âmbito das artes, poderia citar mais alguns exemplos em que a matriz do PAS nos trouxe debates, ao invés de imposições. Em 2006, os primeiros objetos de conhecimentos que traziam obras de arte específicas inseriram o funk no debate escolar por meio da música Sou Feia Mas Tô na Moda, da cantora Tati Quebra-Barraco. Em outros anos, a música Camaro Amarelo (Munhoz e Mariano) estava no mesmo programa que Carmina Burana (Carl Off).
Voltando ao teatro, na 1ª etapa uma tragédia grega caminha lado-a-lado com um besteirol brasiliense. Nas artes visuais, a religiosidade afro-brasileira de Mestre Didi compartilha espaço com a racionalidade de Escher. Agora a pulga atrás da orelha pula feliz, porque, sinceramente, eu acredito nessa diversidade estética e filosófica!
Por fim, voltando ao debate dos meus colegas professores, penso que todos nós que fomos ouvintes-alunos-espectadores ganhamos muito devido aos caminhos que o debate tomou e pela qualidade dos debatedores, principalmente.
Lembro ainda que, por mais que critiquemos o sistema educacional brasileiro, as universidades, as provas, etc, foi em uma escola que esse debate tão rico aconteceu.
É na escola que a crítica pode florescer.
A escola ainda é o lugar da diversidade e da liberdade dos pensamentos. Na escola, jovens se juntam para produzir um jornal que dá voz a várias ideias. Na escola, a matemática, a filosofia, o teatro, a história e a química são vizinhas e convivem nas apostilas, na grade-horária e na cabeça de jovens.
Agora sim, admito: esse texto nada mais é que um elogio ao lugar chamado escola!
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